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Setembro
E eis que Ana Mondini chegou ao Brasil. Encontrei-a pela primeira vez na Sala Café do Centro Cultural Olido, lugar onde Claudia Palma e Armando Aurich ensaiaram desde fevereiro, e mesmo chegando em setembro é como se Ana estivesse ali desde o começo.
Assim como Claudia e Armando não aparentam ter os 60 anos de vida que têm, Ana não aparenta ter 70. Dizem que a dança rejuvenesce as pessoas, porém não gosto dessa expressão, pois à primeira vista faz parecer que a dança anularia a ação do tempo sobre o corpo. Não, em Miêdka o tempo não é um inimigo, mas um aliado, pois é no acúmulo dos encontros e das vivências que residem as mais profundas intensidades dessa dança. Rejuvenesce, portanto, porque não pretende apagar o tempo, mas sim por desafiar a linearidade e fazer tudo ser e estar ao mesmo tempo.
No entanto, ainda existe algo de linear, de progressivo na maneira como Ana veio a se integrar com Claudia e Armando. A chegada calma e silenciosa de Ana contrastou com a imagem que eu construí dela a partir das mil memórias deles dois. Não encontrei a pessoa enérgica que eu imaginava: encontrei uma mulher com ares de quem porta uma sabedoria oculta, e por isso não se revelaria de imediato e sim cada vez mais no decorrer dos dias.
Antes de ensaiar, o trio aquecia-se silencioso e separado, cada qual segundo suas necessidades corporais, cada qual escutando suas preferências sonoras. Eles ouviam música instrumental barroca e canções brasileiras e estrangeiras, que colaboravam para instaurar esse ambiente de introspecção. Essa era a preparação para dialogarem de um modo não verbal, pelos sentidos do corpo e pelos sentidos da arte.

Nesses ensaios que antecederam a estreia de Miêdka, inicialmente foi nas incertezas criativas de Claudia e Armando que Ana encontrou o seu lugar. Logo percebeu-se que a estrutura de improvisação coreográfica ainda reservava bastante espaço para a inventividade e nela bastava, segundo Ana, “deixar o corpo aberto para ser tudo, para esse sim que abre todas as portas”.
As primeiras portas a se abrirem foram as da Sala Olido, na estreia dos dias 23 e 24 de setembro de 2023. No decorrer dos últimos retoques, um círculo foi gradualmente se fechando entre o trio: cada vez mais integrados entre si, menos acessíveis pela interação direta porém cada vez mais disponíveis à performance. É como se eles estivessem concentrando energia para oferecer o máximo de si no palco.
Na Sala Olido eu via tudo se passar de longe, das alturas do balcão técnico onde eu operava o som, em companhia da operação de luz de Hernandes de Oliveira. Dessa observação distante, mas não menos envolvida, nós concordamos em duas coisas: (1) que leva um tempo para os nossos olhos aprenderem a enxergar de longe aquilo que antes viam de perto e (2) que o ponto de observação ideal para assistir Miêdka não era ali no alto e sim rente ao chão, para estar em nível de olho a olho com o trio no ponto da coreografia em que eles atingem sua metamorfose para bicho.
No entanto, esse ponto de vista das alturas também tinha suas vantagens. Criado por Hernandes, foi na amplitude e na clareza da Sala Olido que o espaço cênico de papelão e folhas secas revelou-se como um mapa mundi envelhecido, em tons de sépia. Um mundo para ser atravessado pelas idas e vindas de Claudia, Armando e Ana nesse encontro que é Miêdka.



“Dois minutos pra matança”, anunciava Claudia Palma momentos antes da estreia de Miêdka. Era uma frase comum nos tempos em que eles dançavam na Cisne Negro cia. de Dança, na década de 1980. Era, também, um jeito de dizer que a exaustão de dançar aproximava-se de maneira inexorável, e dela não havia como escapar tal como não se escapa da morte. Era, sobretudo, a expressão que definia o cansaço de três corpos maduros que não saberiam viver de outro modo que não fosse por meio da criação: precisam, portanto, morrer (e renascer) no sacrifício ritual que é natural e necessário para que qualquer forma de arte venha ao mundo.
Depois de cada performance, a consumação do encontro do trio expandia-se para o encontro com a plateia. Miêdka é um encontro sobre memórias, e toda memória fica mais potente quando é compartilhada com o outro. A posição do público, em circularidade e horizontalidade com os bailarinos, fazia com que essa dança fosse também o prelúdio de muitos encontros e reencontros que aconteciam ali mesmo, nos arredores do espaço cênico.
A segunda porta a se abrir foi a do Espaço Cênico Ademar Guerra, no Centro Cultural São Paulo entre 28 de setembro e 01 de outubro. Diferente da Sala Olido, no Ademar Guerra não há configurações tradicionais de teatro. É um ambiente cênico alternativo, no subsolo do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Nesse espaço escuro e cavernoso, a impressão foi que o trio se transformou ainda mais em bicho, pois como já dizia Natassja Martin “os ursos vão para debaixo da terra para sonhar”.
Ao fim dos ensaios gerais, às vezes um morcego sobrevoava o espaço. O vento trouxe folhas para os arredores do CCSP, que foram recolhidas para compor o cenário. A reverberação sonora tinha toda a crueza de lugares que não têm tratamento acústico, e por isso realçou o lado mais visceral da voz de Ana, uma de suas mais intensas contribuições criativas ao trabalho. Cada vez mais integrados ao espaço, Claudia, Armando e Ana foram aprofundando sua animalidade.
Numa metamorfose constante, a performance do trio ganhava mais visceralidade à medida que esse encontro se estendia no tempo. Mantinham suas individualidades, mas transformavam-se de maneira irreversível, entregues ao poder de transmutação de um encontro de décadas passadas que se refazia e se atualizava nessa dança que já não é mais sobre passado nem sobre futuro.
Dançar esse encontro de Claudia, Armando e Ana – que desde o princípio sempre foi sobre dança – parece ter sido a melhor maneira possível de demonstrar seu impacto e sua densidade, que pode não ser palpável ao mundo material, mas pode ser acessada por meio do mundo simbólico da arte. O instante do encontro implica numa metamorfose, e toda metamorfose é uma morte, porém nenhuma morte é um fim. As folhas secas, voltando ao pó depois de tanto serem atravessadas a cada dança, levam consigo a gratidão de poderem ser selvagens de novo.
“A dança é um lembrete para fazer o corpo voltar a ser selvagem.”
Rodrigo Vilalba







Fotos (capa e galeria final): Hamilton Ramos

Acesse também os Registros Poéticos de Miêdka, por Cristina Ávila e Natalia Franciscone