Exercicrítica #2: São Paulo Companhia de Dança — Noite Marco Goecke

(Texto originalmente publicado na plataforma Medium em 22/06/2018)

A noite promete três obras essencialmente diferentes do mesmo coreógrafo. A sinopse vista no site do Teatro Sérgio Cardoso (a mesma depois presente no programa da noite) expõe as propostas de corpo, as tensões emocionais da música, mas deixa a desejar na exposição de informações técnicas a respeito da música. Em Peekaboo (2013) conseguimos saber que a música se trata de uma possível alternância entre uma sinfonia de Britten e peças de um coro finlandês: que coro é esse? A música tem letra, e o significado dela com certeza agrega mais uma camada de informação para a leitura da obra, que neste caso foi negligenciada ao público. Mesmo Pássaro de Fogo (2010) que dispensa apresentações (Stravinsky, claro!) tem seu compositor exposto até com foto, mas Supernova (2009) parece não merecer a citação biográfica de seus músicos: será que realmente não havia nada a dizer sobre eles?

O estilo de Goecke tem como marca registrada o intenso uso de membros superiores, tronco, pescoço e cabeça, enquanto pernas e pés quase se fundem ao pano de fundo preto. Já na primeira performance, saltam aos olhos a ampla variedade de nuances na articulação rítmica desses elementos, executados com maestria pelos bailarinos. Tendo em vista o intenso trabalho de técnica do balé clássico familiar a todos eles, é certamente gratificante poder explorar corporalmente essa gama imensa de possibilidades de movimentação, claro que conhecidas desde a dança moderna, mas que passaram por desenvolvimentos renovados no século XXI.

Em Peekaboo, o jogo do esconder e encontrar é desdobrado em variadas expressões artísticas: no gestual, nas entradas e saídas do palco, no uso do chapéu como objeto de cena e na própria música. A sinfonia de Britten (Simple Symphony, op. 4) é para orquestra de cordas, remontando à tradição balanchiniana de coreografias para esta formação orquestral (vide Apollo (1928) e Serenade (1934)). Em um momento a sinfonia surge sobreposta ao coro e resulta em uma alta densidade sonora (cadê?), sabiamente utilizada durante a misteriosa passagem dos chapéus pelo palco, gerando pouco conflito entre imagem e som. A sinfonia ressurge (achou!), e a coreografia é retomada.

No âmbito geral, a música auxilia na estrutura sem determinar o desenvolvimento rítmico de cada instante. O movimento real é sempre mais intenso do que o sugerido musicalmente, o que traz interesse visual constante. Sonoridade corporal é um outro elemento frequente nas obras, principalmente em Supernova, cuja primeira seção não possui música reproduzida, apenas sons vocais: destaca-se uma musicalidade própria da dança, autônoma em relação à composição musical.

A síntese do trabalho de um único coreógrafo para a noite é interessante para conhecimento de repertório, porém não tão consistente como proposta de espetáculo. É evidente que as três obras não foram feitas para serem performadas lado a lado, pois embora rica a proposta fica um tanto repetitiva depois de uma hora de apresentação, e seria mais destacada se intercalada com coreografias mais contrastantes entre si.

Com uma forte abertura de temporada, a SPCD gera expectativas positivas quanto ao decorrer das próximas performances, que marcarão o décimo ano de uma Companhia de dança que é referência nacional em qualidade técnica e artística. Que seja o décimo de muitos anos que estão por vir.

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