Foto: Júnior Cecon
A Cia Carne Agonizante estreou sua mais recente obra: Konstituição: Ré em 2ª instância. Foi lançada no YouTube e contou também com uma série de lives com os artistas da obra em sua semana de estreia.
A obra estava para ser estreada presencialmente em breve, mas foi impedida devido à pandemia de Covid-19. A companhia, então, mudou os rumos do projeto e o transformou em um trabalho de videodança, que conta com excertos da coreografia gravados logo antes de o isolamento social se colocar sobre a cidade de São Paulo. O contexto social pandêmico coloca nessas cenas uma aura nostálgica, e ainda que tenham sido gravadas há poucos meses atrás parecem pertencer a um passado muito distante. As cenas em conjunto são colocadas em paralelo com os bailarinos sozinhos em casa, (cada qual realizando as sequências previamente ensaiadas em grupo), o que impõe suas limitações físicas, mas sem que se perca um senso de unidade e de memória que os reúna como um grupo.
Em outros momentos coreográficos, a movimentação, cenografia, e o próprio figurino parecem mais autorais, talvez improvisados, e cada bailarino e bailarina parece dar uma contribuição criativa que ultrapassa as fronteiras de uma coreografia marcada e ensaiada. Os artistas afirmam, assim, seus papéis de intérpretes-criadores, acrescentando camadas de significado que aparentemente não partiriam das propostas coreográficas de Sandro Borelli. Sendo assim, o isolamento social foi utilizado como uma oportunidade criativa, fazendo artistas repensarem o uso do corpo e do espaço.
O som é quebrado, propositalmente distorcido para amplificar a sensação de desconforto. É composto por uma série de colagens de áudio da sessão final da Assembleia Constituinte de 1988 na voz de José Sarney, intercaladas com excertos de batidas de rap e aparições discretas da música para piano de Eric Satie – músicas que infelizmente pouco dizem sobre o Brasil. As colagens de áudio são repetidas à exaustão, chegando ao ponto de se descaracterizarem, perderem o significado, remetendo aos noticiários atuais, que muito repetem e enfatizam a solidez da democracia brasileira enquanto, do lado de fora, se observa a sua ruína iminente.
O alto grau de estaticidade, quase monotonia gerado pela repetição sonora, embora adequado à proposta, poderia ser mais bem explorado musicalmente. É compreensível que a situação pandêmica nos imponha adaptações criativas nunca antes experimentadas (principalmente em relação aos recursos técnicos de uma videodança), porém vejo que os trabalhos da Cia Carne Agonizante poderiam ser muito enriquecidos caso houvessem parcerias com jovens compositores da música contemporânea, de linha minimalista ou eletroacústica por exemplo. O âmbito sonoro tem potencial para amplificar as intenções dramatúrgicas da companhia.
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Para ler, ver e ouvir mais:
- Pedro Marin: O sólido edifício da democracia
- Constituinte 1987-1988 (2012) – Filme de Cleonildo Cruz
Este texto foi um exercício do curso de Jornalismo Cultural e a Crítica de Artes, realizado no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP.