(Texto originalmente publicado no e-book ANDA 2020: Os desafios pandêmicos e outros modos de re-existência nas artes)
Nos foi dado como tradição quase ancestral que o passado está atrás de nós, o presente é aqui e o futuro está à frente. Uma espacialização que organiza linearmente nossa percepção do tempo, como se andássemos inexoravelmente para a frente, sem a menor possibilidade de nos movermos para um lado ou para o outro, ou até mesmo para trás. Mas o que acontece com o tempo quando não podemos mais nos mover adiante?
O isolamento social imposto a nós pela pandemia de Covid-19 interrompeu nosso fluxo de movimento frontal em direção ao futuro. Presos dentro de nossos próprios lares, começamos a descobrir novos jeitos de nos mover que contrariam a antiga linearidade. Descobrir novos jeitos de nos mover no espaço tem sido aflitivo e difícil para alguns, revelador e potente para outros. Essa momentânea ausência de futuro tem levado o mundo a repensar o que nos aguarda e o que podemos fazer dos próximos tempos. O 6º Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em Dança nos imergiu dentro dessa problemática, colocando como tema “Quais danças estão por vir? Trânsitos, políticas e poéticas do corpo”. O congresso, então, fez da desolação pandêmica uma experiência estética e intersubjetiva, que perpassa nossas vivências mesmo à distância.
Na mostra artística do congresso pudemos apreciar a Improvisação em pandemia: para o meu pequeno mundo, de Antrifo Sanches. Nela, o tempo de dias e noites se alterna, na repetitividade do exato mesmo espaço doméstico. Frases de movimento ora breves, ora desenvolvidas, são sequenciadas em cena e contadas como quem conta o tempo de cárcere, mas chega um momento em que não faz mas sentido continuar contando. Já não se trata mais de segmentar a vida em dias já que, como a Clair de lune de Claude Debussy sugeriu desde o início da obra, nossa experiência dos dias tem se tornado uma eterna noite. É como se a música já dissesse desde o começo algo que foi sendo revelado aos poucos no corpo que, sujeito à estaticidade espacial da casa, começa a sofrer distorções na percepção temporal de dia e noite. A luz azul de lua, que agora nos toca muito mais do que a luz do sol, vem das telas de computadores, tablets e celulares. Não somos mais tocados diretamente pela luz solar dos afetos, que nos aquecia e nos energizava: tudo o que temos agora são afetos indiretos, refletidos por meio de telas tal qual a lua reflete a luz do sol.

É por meio dessas telas lunares que observamos também os registros de espetáculos de dança, carregados de memórias afetivas, da lembrança ainda tão vívida da simultaneidade, da coexistência de corpos dentro de um mesmo tempo e espaço. Uma melancolia noturna passa a revestir a apreciação desses registros, e traz consigo uma saudade nostálgica que é própria das memórias. E a memória, por si só, difere temporalmente da experiência real: tem caráter repetitivo, de tornar e retornar ao já vivido, característica essa que também é própria do registro videográfico, que nos põe a assistir e reassistir aos vídeos da mostra artística do congresso.
O formato videográfico provoca alterações substanciais no caráter visual e espacial da dança. Perdemos a tridimensionalidade real, a presença, o cheiro, o suor, a plateia. Vladmir Jankélévitch[1] relaciona a visualidade à luz, que nos dá o que há para ser visto no espaço, que revela o reino imagético e estático. O escuro, para o autor, se relaciona ao auditivo e ao tempo, àquilo que se esvanece logo quando percebido, ao som que é e no instante seguinte já não é mais. Nesse sentido, a dança se encontra numa posição híbrida, dada sua visualidade temporalizada. Ela não está nem no sol do meio-dia nem nas trevas da meia-noite: talvez esteja passando por um momento de crepúsculo, dado o atual declínio da espacialidade e visualidade vivas e pulsantes dos espetáculos presenciais. Ou talvez esteja passando por uma aurora, dada a forte ênfase visual da videodança e a fixidez/estaticidade garantida pelo registro gravado.
Mas a música, para Jankélévitch, é sempre noturna. Não é de hoje que a música de Debussy empresta seus tons noturnos à dança. A música desse compositor tece um extenso fio de memória que vem dos Ballets Russes de Diaghilev, passando pelas sonoridades difusas de L’après midi d’un faune (1911) e Jeux (1913). Embora a própria Clair de lune date de antes desse período (1903), já é possível observar nela elementos importantes para a revolução musical que viria a ocorrer na dança: pulsação propositalmente oculta, menor senso de linearidade, estrutura formal mais aberta, caráter improvisado. Somados, esses elementos geram uma música diáfana, flutuante. Porém, Clair de lune ainda mantém elementos opostos a esses em sua seção central, o que gera um arco dramático de estaticidade-tensão-estaticidade. A dança de Antrifo não segue a dramaturgia musical à risca justamente porque o corpo tem outras necessidades expressivas que por vezes fogem a essa linearidade: mantém-se sentado, deita, respira, improvisa movimentos sinuosos, bruscos e leves com os braços, deita, respira, contempla a paisagem, respira ofegantemente como quem chora. Por fim, deita lentamente como quem dorme. Seu repouso ao fim da obra parece vir de uma compreensão da própria casa (o seu pequeno mundo, como no título) como lugar da reflexão e do descanso, atitudes corporais que se relacionam à experiência da noite.
Não podemos nos esquecer que a escuridão da noite raramente é absoluta. A única escuridão absoluta é a da morte, e embora ela nos cerque e já tenha ceifado mais de cento e quarenta e cinco mil dos nossos, nós temos o privilégio de poder contar com a luz da vida, ainda que eclipsada pelas atuais circunstâncias políticas e sociais. Passado o choque e a repentina cegueira frente ao escuro que nos encobriu logo no início da pandemia, começamos a nos adaptar sensorialmente: as pupilas se dilatam para absorver melhor a pouca luz que nos chega, os cinco sentidos se aguçam, ouvimos com mais nitidez, tateamos com mais atenção. Já não falo mais sobre a performance de Antrifo Sanches em si, mas sim do que está por vir depois dela, sobre a experiência do corpo que está exposto às intensas transformações ditadas pela pandemia de coronavírus e ainda mais exposto aos desmandos de um governo sombrio. Esse corpo, mais do que nunca, necessita de sentidos aguçados para não se perder na noite do obscurantismo.
[1] OLIVEIRA, Clóvis Salgado Gontijo. O elogio à noite em Vladmir Jankélévitch. In: Mirabilia: Arte, Crítica e Mística. Barcelona, v. 1, n. 20, p. 416.
Acho genial essa percepção de como nossas vidas estão agora envolvidas nessa luz azul, talvez uma noite sem fim. Suas palavras me abrem portas pra muitas observações e perspectivas que ainda não tinha experimentado. Obrigada!