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Por que a música usa partitura e a dança não?

Uma pessoa que tenha comparado as artes (e suas práticas) pode facilmente perceber as peculiaridades de cada uma delas. A música, por não ter representações visuais concretas, vive sendo associada à sua escrita: é comum colocarem clave de sol, colcheias, semínimas, bemóis e sustenidos “voando” em ilustrações, na tentativa de representar o som se propagando pelo ar.

A música segundo o leigo.

O aprendizado desses símbolos é um dos primeiros passos para quem se aventura em aprender música. Em dança, por outro lado, é raro que um profissional chegue ao ponto de aprender como registrar sua arte graficamente. É claro que se pode escrever sequências de dança com nomes de passos, mas já parou para perceber como esse tipo de registro não é o suficiente para que uma pessoa, daqui a uns cem anos, recupere esse escritos e dance exatamente o que está registrado ali?

Esse assunto é denso e extenso, mas na tentativa de esclarecer essa diferença entre música e dança vou confrontá-las com as mesmas quatro perguntas:

1- Há quanto tempo a notação de música ocidental existe? Uns 600 anos, pelo menos.

2- Ela foi desenvolvida de acordo com as necessidades práticas dos músicos? Sim. Desde o canto gregoriano, na Idade Média, foi ficando claro que não dava para memorizar com precisão tudo o que se cantava. Então surgiu a notação por neumas. Repare como as linhas sobem e descem, indicando o subir e descer das melodias:

Escrita de cantochão por neumas.

3- Esses músicos foram modificando-a ao longo do tempo, para que a notação se adaptasse à música que vinha sendo realizada? Sim. Os neumas não davam conta de representar as notas musicais a serem executadas com tanta precisão, então os músicos passaram a usar as linhas de pauta para deixar a escrita mais clara.

Canto gregoriano: semelhante à escrita por neumas, porém com mais definição de alturas graças à pauta.

4- Essa notação foi transmitida de pessoa para pessoa, de modo a se perpetuar pelas gerações? Sim, inclusive muita música do passado foi e é reconstruída hoje justamente porque temos acesso às suas partituras. Foi por isso que a música de Bach pôde ser revivida em meados do século XIX, mesmo tendo sido composta séculos antes.

Manuscrito de uma cantata de J. S. Bach. As “bolinhas” ganham hastes para dar indicações de ritmo (Foto de Masatoshi Okauchi)

Voltemo-nos à dança:

1- Há quanto tempo a notação de dança ocidental existe? Se formos falar de danças barrocas, desde a corte de Luís XIV. Em meados de 1700, Pierre Beauchamp (o mesmo que criou as cinco posições de pés do balé que usamos até hoje) criou também um sistema de notação coreográfica juntamente com Raoul-Auger Feuillet. A notação coreográfica era (lindamente) acompanhada da partitura da melodia correspondente àquela coreografia.

Notação Beauchamp-Feuillet. A folha representa o espaço do salão, os desenhos registram apenas os movimentos dos pés pelo chão.

2- Ela foi desenvolvida de acordo com as necessidades práticas dos dançarinos? Sim, pois como se pode ver, o sistema de notação apresentado anteriormente não dava conta de registrar o que estava acontecendo com os braços de quem dança, e não é adequada para representar muitos bailarinos de uma vez só. Então por volta de 1890, Vladmir Ivanovich Stepanov desenvolveu um outro método de notação, mais adequado às necessidades práticas do balé clássico. Muitos dos balés de Marius Petipa foram registrados segundo esse sistema.

Método Stepanov. Registro de um trecho do balé La Bayadère.

3- Esses dançarinos foram modificando-a ao longo do tempo, para que a notação se adaptasse à dança que vinha sendo realizada? Sim, e o exemplo acima também responde essa pergunta. Nele se vê que é possível entender posições gerais dos dançarinos no palco, mas pouco se entende, à primeira vista, sobre o movimento e posição de cada corpo. Valerie Sutton, então, criou um sistema mais adequado para a visualização do corpo inteiro do bailarino, e que por usar pauta de cinco linhas como a da música favorece que música e dança sejam escritas num mesmo registro.

Notação de balé clássico segundo o método Sutton. Alta similaridade com a notação musical. (Foto de Revista Dançar)

4- Essa notação foi transmitida de pessoa para pessoa, de modo a se perpetuar pelas gerações? O problema principal da notação de dança aparece justamente aqui: a notação de dança é desenvolvida e modificada por coreógrafos e/ou estudiosos da dança, e raramente por bailarinos. É um tipo de estudo especializado, que requer um aprofundamento teórico para além das necessidades práticas que um dançarino tem no dia-a-dia. Porém, embora a notação não tenha apelo imediato para o dançarino, ela tem uma importância histórica que não pode ser subestimada. Arthur Saint-Léon, por exemplo, grafou a coreografia de La Vivandière em seu próprio sistema de notação (Sténochoreographie) e, por meio dele, foi possível reconstituir a coreografia dessa obra e dançá-la hoje em dia.

Comparando as respostas da música e da dança às mesmas perguntas, vemos que a música teve uma linha “evolutiva” em sua notação, culminando no modelo de partitura que usamos hoje em dia. Com a dança isso não aconteceu. Cada sistema de notação de movimento possui suas peculiaridades, suas vantagens para determinado gênero de dança, o que não permite que um sistema antigo substitua por completo um sistema novo. O único sistema que realmente tenta abarcar o movimento do corpo como um todo no espaço (também na tentativa de superar as falhas dos sistemas anteriores) é o de Rudolf Laban, conhecido como Labanotation:

A suntuosa abstração e complexidade do método Labanotation. Trecho do balé Agon.

Se registrar o som, que é algo que ocorre no tempo, já é difícil, imagine então registrar algo que ocorre no tempo e no espaço, em três dimensões, com vários corpos em movimentos diversos. O nível de complexidade da notação que pretende abarcar todos esses elementos (como no caso da Labanotation) é tão grande que requer um profissional capacitado especificamente nessa tarefa: a de anotar e compreender o registro escrito da dança.

A notação de dança é um universo por si só. Sua diversidade de métodos, sistemas, camadas e lógicas internas é grande e merece mais atenção por parte dos dançarinos como um todo. Porque, por mais que ela seja difícil de ser aplicada de imediato na prática de dança, ela tem o poder de formalizar, de contar a história da dança, de dar um pouquinho mais de solidez a uma arte que é tão efêmera.

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