A missão nada impossível de Corpos Velhos na Dança

Uma parceria entre Portal MUD – Museu da Dança e Associação de Cultura Corpo Rastreado entregou-se à tarefa de colocar juntos em cena os grandes nomes da dança paulistana, por meio do projeto Corpos Velhos na Dança, idealizado e dirigido pelo bailarino e coreógrafo Luis Arrieta. Com a intenção de quebrar os pesados tabus de idade que permeiam muitos ambientes de dança cênica, o projeto questiona: Onde estão os corpos velhos na dança? O que significa ser velho para a dança?

Do projeto e dessas questões nasceu o espetáculo Corpos velhos: para que servem?, que foi destaque na Bienal Sesc de Dança 2023 e no Sesc Consolação, totalizando apenas três récitas. Foram poucas, por enquanto, as oportunidades de presenciar juntos em cena os gigantes Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Luis Arrieta, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada, e era palpável na plateia a emoção de ver reunidas tantas décadas dessas vidas integralmente dedicadas à dança. Não era uma emoção piegas: era o reconhecimento da resistência, da força e da coragem que foram necessárias para essa reunião e para a invenção de uma dança que desafie as barreiras do etarismo.

Mônica Mion, Neyde Rossi, Marika Gidali e Décio Otero.

Sentados em fila, eles dançavam um improviso detalhadamente estruturado e conduzido com o apoio de uma música ruidosa e grave de Guilherme Vaz (1948-2018), que permeava quase toda a coreografia. Dessa base brotavam músicas conhecidas com ares de memórias recuperadas, como a abertura do balé Serenade (1935), o pas de quatre de Lago dos Cisnes, a voz de Elis Regina ou um fragmento de Astor Piazzolla que se esvaíam rapidamente, caindo de volta na escuridão do esquecimento, retornando ao abismo do ruído grave.

Durante esses momentos de lembranças musicais, os corpos dos artistas respondiam mais vivamente ao som, como se já tivessem dançado essas músicas num passado distante. O interessante é que mesmo nos momentos em que essas lembranças estavam ausentes, mesmo na escuridão do ruído os artistas mantinham sua intenção de diálogo com o som, com a força daqueles que insistem em dançar até quando as condições sociais são desfavoráveis.

Havia algo de rústico, de caseiro na edição de som, que de certo modo dialogava com a estética geral do espetáculo: eles dançavam em roupas cotidianas, sem nenhuma intenção de ser algo além daquilo que já são (e que, considerando a história da dança paulistana, já é bastante coisa). É louvável a atenção à memória de Guilherme Vaz, compositor da mesma geração desses artistas de dança, e por mais que o mínimo seja o suficiente é evidente que esse grupo histórico merece muito mais: mais qualidade sonora, mais divulgação, mais público, mais reconhecimento.

Mesmo gritando contra as ilusórias barreiras etárias da dança, o trabalho encontra sempre uma leveza, como no bom humor de dançar o tema de Missão Impossível nos agradecimentos. Pode ter sido difícil porém não foi impossível, graças à chama de arte inapagável que queima dentro de todos os artistas, produtores e técnicos, mantendo o projeto de pé. Ao final da coreografia eles citam Kuarup: a questão do índio (1977), um clássico revolucionário de Decio Otero e Marika Gidali, com uma diferença crucial: diferente dos índígenas, nossos lendários artistas da dança andam firmemente à frente, apoiando-se uns nos outros sem cair no chão.


Corpos Velhos: para que servem?

Direção geral: Luis Arrieta
Artistas: Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Luis Arrieta, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada;

Assistente de direção: Lumena Macedo

Assistente de coreografia: Suzana Mafra

Assistente técnica: Cleusa Fernandes

Iluminação: Silviane Ticher

Vídeo: Vinícius Cardoso

Fotos: Emidio Luisi, Gil Grossi e Naava Bassi

Edição de trilha sonora: Marcos Palmeira – colagem musical com músicas de Guilherme Vaz e Mercedes Sosa

Coordenação de projeto: Portal MUD (Talita Bretas)

Produção: Corpo Rastreado

Apoio: Ballet Stagium, Fábio Villardi e Loty Okada.


Crítica feita em parceria com o fotógrafo Giorgio D’Onofrio.

*Foto de Kuarup (1977): autoria desconhecida

Agradecimentos ao Grupo de Estudos “Dança e Apreciação”, organizado por Henrique Rochelle, no qual foi organizado um encontro que contribuiu para o desenvolvimento dessa crítica.

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