A travessia de Chopin a Jobim – Temporada SPCD 2021/1

Depois de um ano sem apresentações ao público – que mais pareceu uma década – a São Paulo Companhia de Dança retornou aos palcos do Teatro Sérgio Cardoso. Com plateia reduzida, assentos demarcados e entrada e saída conduzidas de acordo com os protocolos de segurança impostos pela pandemia de COVID-19, pudemos novamente ter o prazer de assistir os bailarinos ao vivo, sem a mediação de telas na qual ficamos imersos desde o início de 2020.  É um alento poder voltar a ver gente dançando, é uma experiência muito diferente de ver celulares e computadores formando imagens de pessoas por meio de luzes e cores.

Porém, como a temporada tem por título Tempo de Travessia, há um pé no presencial e outro no online. As obras foram transmitidas ao vivo também para o YouTube, contando com entrevista de introdução às obras (programa clássico da companhia) e ângulos de câmera diversos justamente para que faça mais sentido observar as obras por meio das telas.  Foi no intervalo entre as duas obras apresentadas que a plateia do teatro foi colocada na travessia entre telas e presença, quando a tela serviu de ferramenta para evitar aglomerações de pessoas no saguão, transmitindo ao vivo os preparos da transição cênica que ocorria nos bastidores.

A noite abriu com raízes no passado.  A icônica bailarina Ana Botafogo foi responsável pela remontagem de Les Sylphides, a primeira remontagem coreográfica de toda sua carreira. Ana traz consigo a carga lírica de um tempo em que o balé clássico era menos sobre virtuosismo técnico e mais sobre expressividade, e transfere essa herança aos jovens bailarinos da companhia. E, como o passado estático é algo que só existe na teoria, é claro que a remontagem de Les Sylphides estaria permeada de elementos do presente: no tecido de que se faz os figurinos, nas escolhas de cenário e iluminação – coloridos e sempre mutáveis, tingindo os tutus brancos, sugerindo paisagens no plano de fundo, realçando os desenhos coreográficos.

Em tempos em que somos privados de um futuro certo, faz todo o sentido que nos voltemos ao passado e que idealizemos outros mundos e outros amores, característica que é marcante no balé romântico. Les Sylphides não tem enredo, não conta uma história, e por isso se apoia na música para que ela lhe conceda seus sentidos: mais do que narrar ou explicar, a escolha da música de Fredéric Chopin (1810-1849) pelo coreógrafo original, Michel Fokine (1880-1942), revela uma intenção de evocar por meio da música a idealização, o sonho, o romance, ideias essas que estão simbolicamente arraigadas na música do compositor polonês.

A divulgação fotográfica do espetáculo foi fortemente focada no balé romântico, talvez por dois motivos. Primeiro, para atrair uma plateia leiga que se mobiliza mais para assistir balé clássico do que para ver dança contemporânea. Segundo porque, mesmo que a obra de Henrique Rodovalho seja de um gênero de dança um tanto distante do balé, existe uma coerência forte entre as duas obras que quase justifica que o espetáculo como um todo tenha no balé Les Sylphides a sua síntese.

Em Só tinha de ser com você, obra-prima da dança contemporânea de Henrique Rodovalho, temos um salto para o tempo presente e para o espaço nacional, porém não de maneira súbita. De maneira semelhante a Fokine, Rodovalho busca no álbum Elis e Tom (1974) significados que sua movimentação coreográfica não construiria por conta própria. A coerência musical do espetáculo também se dá entre os compositores: o fato de Fréderic Chopin ser inspiração musical direta de Tom Jobim (como em Insensatez, que é releitura do Prelúdio em mi menor de Chopin) desenha uma travessia sonora entre o ontem e o hoje.

É a música desses dois gigantes da música brasileira, Elis Regina e Tom Jobim, que traz uma colorida camada de sentimento a Só tinha de ser com você, porém com nuances de um romantismo muito contemporâneo, um pouco mais desiludido e realista que o do balé romântico. A obra foi adaptada para manter os bailarinos pandemicamente distantes entre si, uma escolha que somada aos versos cantados remete diretamente à solidão do isolamento social e à idealização de um futuro pós pandêmico.

No programa de sala, Só tinha que ser com você é descrita como uma releitura coreográfica do álbum Elis e Tom, selecionando algumas das músicas do álbum e reordenando-as para construir a abstrata dramaturgia da obra. Nesse processo, é feita uma inversão interessante com a canção Águas de Março. Essa, que talvez seja uma das canções mais conhecidas de Elis e Tom, é ironicamente a música que não é coreografada na obra, mas sim usada como trilha para os agradecimentos. Aqui, as Águas de Março (que no álbum original é música de abertura) não fecham o verão, mas fecham o espetáculo com a leveza dos bailarinos sambando discretamente durante os aplausos e com a plateia assobiando a melodia ao sair pelos corredores do teatro.

Foi uma temporada marcada pelo devaneio de ontem e de hoje, que tanto retratou quanto foi interrompida pelo próprio curso da pandemia. Nos restou a idealização do que a continuidade da temporada poderia ter sido, mesmo sabendo que ela foste o que tinha de ser.

*Foto de capa: Fernanda Kirmayr

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