A forma de composição música-dança deveria envolver necessariamente um trabalho em conjunto com todos os materiais utilizados. A música será, então, mais que um acompanhamento: ela será parte integral da dança
John Cage
John Cage ao piano, Merce Cunningham e uma bailarina ensaiam ao fundo da foto.
Cunningham havia coreografado uma obra de Erik Satie chamada Socrate, para voz e piano. Cage havia composto uma transcrição dessa música para dois pianos, mas o uso dela não foi autorizado pelos editores da obra de Satie. Para contornar a situação (e não deixar a coreografia de Cunningham desamparada!), Cage compõe uma peça para piano solo utilizando as exatas estruturas de frase da música de Satie e procedimentos de aleatoriedade. Batiza-a de Cheap Imitation (é a música que Cage executa na foto). Seguindo a mesma linha irônica, Cunningham intitula sua coreografia de Second Hand 🙂
Um imprevisto e uma ‘gambiarra’ dão origem a um novo jeito de música e dança estarem juntas. Cage respeita os tamanhos de frase musical usados por Cunningham, sem deixar de acrescentar neles o acaso, a marca mais forte de sua composição musical. Essa anedota é exemplo de adaptabilidade por parte dos artistas e da maleabilidade do material musical. Estamos tão acostumados a ter contato com música pronta, fixa, reproduzida mil vezes igual nos nossos celulares em aulas e ensaios de dança que perdemos a ideia do quanto ela pode ser mutável, flexível e rica.
Escolho essa citação como a última de 2020 porque esse ano nos exigiu altos esforços de adaptação. Estejamos flexíveis para o que virá em 2021, e que saibamos apreciar o que há de melhor na mudança.
Referências
CAGE, John. Silence: lectures and writings. Hannover: Wesleyan University Press, 1961.
Download do livro aqui: https://annas-archive.org/md5/a7a13646bf59b5ad4feaa3fe03e2f325