Exercicrítica #6: SPCD 2019/1: Agora – Trick Cell Play – Suíte para dois pianos – A morte do cisne – Pulcinella

09/06/2019

A SPCD abre a nova temporada com duas obras inéditas e em direção à contemporaneidade. Agora, com coreografia de Cassi Abranches e música de Sebastian Piracés, é uma peça sobre tempo que explora a variedade semântica dessa palavra, desdobrando-a de várias maneiras. Aborda cronologia, linearidade, ciclos, memória, passado, futuro, mas acima de tudo o presente.

Abranches realça que nenhuma dessas definições de tempo é fechada em si mesma: é plenamente possível transitar entre elas. Já na abertura, vemos que o tempo cronológico – marcado pelo metrônomo e movimento pendular dos bailarinos – se expande gradualmente em movimento rítmico. Ou seja, a coreógrafa afirma que, em muitos casos, a dança se utiliza da música como marcação cronológica de uma coreografia, mas que seria muito reducionista dizer que o papel da música termina por aí. Ao assistir Agora, fica claro que a música é mais que isso: ela traz todo um arcabouço de ritmo, ambientação e narrativa que raramente é possível de ser substituído por outras artes. Por sua vez, a coreografia ora assimila e realça as estruturas musicais, ora acrescenta camadas rítmicas que só a dança é capaz de proporcionar. Juntas, dança e música emolduram uma fatia de tempo e espaço para fazer dela uma superfície de expressão humana, e essa fatia de tempo é o agora.

Na segunda parte temos a pré-estreia de Trick Cell Play, a mais nova criação de Édouard Lock. A música é de Gavin Bryars e tem formação incomum (piano, clarone, dois violoncelos e contrabaixo), realizando um misto de árias de óperas que passa por compositores como Haendel, Puccini e Bizet. Uma aura de obscuridade envolve toda a obra: seja na iluminação, seja nos figurinos, seja na própria música, fazendo com que sempre nos percamos em meio aos detalhes. Enquanto todos os quatorze bailarinos são solistas, os músicos se comportam de maneira análoga, participando repentinamente da composição coreográfica (evento que é quase sempre percebido com surpresa). Assim, é percebida em cena uma obra de altas densidades, que nos transmite a sensação de que sempre há mais para ser visto e ouvido do que os sentidos são capazes de captar.

15/06/19

Em seu segundo programa da temporada de 2019, a SPCD focaliza as obras para sapatilha de ponta. A noite abre com Suíte para dois pianos, de Uwe Scholz, peça já presente no repertório da companhia desde o ano passado e que agora ressurge com mais maturidade. É possível perceber a segurança e confiança dos bailarinos, que demonstram ter se apropriado da obra.

Trata-se de uma proposta de síntese entre a música de Rachmaninoff, desenhos de Kandinsky e coreografia de Scholz. O movimento coreográfico, ora técnico e geométrico como as linhas retas e paralelas projetadas ao fundo, assume a forma de dueto frente aos pontos e delinea contornos fluidos e sinuosos de um pas de troix frente às curvas do desenho. Mas nem tudo se resume à forma: o bom humor surge ainda no dueto quando a música, com frases interrompidas, é retratada coreograficamente na frustração de não se ter espaço para dançar…

Em A Morte do Cisne, vemos um cisne forte, que toma o espaço do palco vigorosamente, como quem dança pela última vez, sabendo da iminência do fim mas sem sucumbir precocemente à morte. O trabalho de iluminação mais uma vez se destaca, realçando a dramaticidade dos suspiros finais do cisne. A remontagem foi feita a partir da coreografia de Michel Fokine (1880-1942) por Lars Van Cauwenberg, e surge mais atual do que nunca, pois se dá no corpo de uma bailarina que já se apropriou da técnica de dança contemporânea, técnica que proporciona grande fluidez na movimentação de braços e costas.

Foto: Fernanda Kirmayr (SPCD)

A noite fecha com a leveza de Pulcinella, em remontagem de Giovanni di Palma. Aí então fica claro de onde vem o bom humor na execução de Suíte para dois pianos: ele é parte intrínseca da narrativa em Pulcinella e inevitavelmente transborda para a performance de outras obras.

Vários fatores predispõem Pulcinella a ser uma obra destinada às releituras. A música de Stravinsky é releitura neoclássica do barroco tardio de Pergolesi (1710-1736). O figurino original era de Pablo Picasso, portanto releitura cubista da tradição da Commedia dell’arte. Na remontagem da SPCD, por sua vez, temos um visual contemporâneo que se coloca como releitura de todas as releituras anteriores e que, por ser apresentada em diversos espaços diferentes (Theatro São Pedro, Teatro Sérgio Cardoso e, em breve, Sala São Paulo) requer uma diversidade de releituras de si própria, seja na composição do cenário, seja na performance musical, conferindo à obra uma plasticidade que a renova a cada performance.

Foto de capa: Charles Lima (SPCD)

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