Grupo Corpo em Primavera: Palavra Cantada, palavra incorporada

Depois de um escuro e longo inverno pandêmico, é simbólico que a retomada da dança (e de seu ritual) em São Paulo aconteça literalmente na primavera. A relação entre dança, rituais e primavera nos remete a tradições de perto – as temporadas de dança do Teatro Alfa são realizadas desde 2004, com um hiato somente em 2020 – e a tradições de longe – impossível não lembrar da Sagração da Primavera (1913). O ritual que retomamos hoje, no entanto, não é da Rússia primitiva de Stravinsky, Nijinsky e Diaghilev, mas ritual do próprio ato de assistir dança: a compra de um ingresso, o preparo e deslocamento até o teatro, o isolar-se do mundo, desligar os celulares e focar-se inteiramente no que acontece no palco. É uma presença da qual qual fomos privados devido à pandemia de coronavírus, mas que hoje podemos recuperar.

A estreia de 2021 do Grupo Corpo dialoga com as tradições já no título da obra: Primavera. Ela apresenta tanto os traços coreográficos familiares de Rodrigo Pederneiras, de ênfase nos quadris, nos contratempos da música e numa leveza do corpo, quanto as cicatrizes pandêmicas, que surgem no distanciamento entre bailarinos e no uso do vídeo. A cenografia consiste em uma grande projeção que transforma os bailarinos em planos de fundo de si próprios, gerando uma aproximação visual intensa que remete às danças por vídeo transmitidas desde a pandemia. É como se a dança saísse das telas, mas as telas não saíssem mais da dança, que daqui pra frente tendem a ser mais presentes mesmo no teatro.

Não poderia faltar uma das marcas registradas do Grupo Corpo: a música originalmente composta para dança. As canções de Sandra Peres e Paulo Tatit, da dupla Palavra Cantada, foram recriadas em arranjos instrumentais, que destacam a diversidade de timbres e ritmos populares inerentes às canções originais, elementos às vezes ofuscados pela palavra. Mas a ausência de letra não tira das músicas seus genes de palavra, que embora não seja cantada está sendo dançada, é uma palavra que se revela nos jogos lúdicos do corpo em movimento. E, para quem conhece a letra das canções, é até possível ouvi-las mentalmente e ler a dança a partir de uma memória musical.

Na segunda parte do espetáculo, o Grupo Corpo apresentou Gira, de 2017. Nela, o ritual surge mais explícito e mais sóbrio. A obra é inspirada em rituais de umbanda, especialmente no orixá Exú, e conduzida pela música densa e diversa da banda Metá Metá. Nos constantes movimentos de giro, tanto de Gira quanto de Primavera, as saias dos figurinos de Freuza Zechmeister se abrem sem precisar do esforço dos bailarinos, e pontuam o ritual do palco uma leveza que só acontece na arte, leveza da qual sentimos falta e que agora retomamos com ares de esperança e solenidade. Que venham mais danças, mais rituais e mais primaveras.

*Foto de capa: José Luiz Pederneiras

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