Em temporada comentada transmitida pelo YouTube, o Grupo Corpo transmitiu a gravação completa de 2013 da obra Parabelo (1997), seguida de bate-papo ao vivo com o coreógrafo Rodrigo Pederneiras e bailarinos. Dentre as obras da companhia, Parabelo era dançada todos os anos, até que veio a pandemia de COVID-19 e a obra não foi dançada em 2020. Então, nada mais justo do que abrir a temporada com ela.
Mas, se Parabelo não foi dançada isso não significa que ela não tenha sido lembrada, não tenha sido evocada. A obra se tornou ícone de brasilidade, representou o Brasil na abertura das olimpíadas Rio 2016 e teve sua canção Xiquexique indevidamente apropriada por Carla Zambelli em julho de 2020 para ilustrar um suposto apoio da região nordeste ao presidente Jair Bolsonaro. Não funcionou: José Miguel Wisnik – que assina a trilha do balé juntamente com Tom Zé – e o Grupo Corpo repudiaram o uso da música. Por outro lado, Xiquexique também surgiu como trilha para o podcast Imposturas Filosóficas, colaborando para a dançante leitura do texto Zaratustra e a Dança no episódio nº 123 (aqui, qualquer semelhança com a dissertação Um, dois, três: a dança é o pensamento do corpo, de Helena Katz, é presente do acaso…).
Conflitos políticos à parte, vemos que Parabelo ainda hoje significa a cultura nordestina. Para além de uma estética da fome, a obra enfatiza o que há de vivo e enérgico na cultura do nordeste. Os figurinos, de trocas constantes, progridem das malhas em marrom metalizado à vibração do vermelho, laranja e amarelo, mas sem traços de regionalidade. Na música, por sua vez, abusa-se do que há de nordestino no acordeão, triângulo, zabumba, rabeca, escalas modais, referências a Luiz Gonzaga e nas vozes que remetem aos repentistas. E a coreografia se fundamenta na linguagem do balé em sotaque brasileiro: enxerga-se a linha de pernas e a técnica de saltos, transformadas pelos pés flexionados e pela intensa movimentação de bacia que dá fluidez ao movimento, diluindo os traços do balé clássico que, no entanto, ainda ficam evidentes. Não seria errado dizer, então, que a música consegue ser mais nordestina que a coreografia e os figurinos, e que Tom Zé é quem colabora para isso por ser baiano. No todo, temos uma obra que olha o Nordeste a partir do Sudeste, mais especificamente da cidade de Belo Horizonte.

A falta de um equilíbrio de referências nordestinas entre os elementos da obra não é um demérito, uma vez que se trata de uma obra de dança cênica e não de uma reconstituição de alguma manifestação cultural nordestina. Isso permite que a obra contenha construções de sentido interessantes, como o uso da cegueira: está nas letras das canções, que se referem diretamente aos cegos cantadores do Nordeste, está no uso do blackout em inícios de cenas, está na escolha de movimentação coreográfica em que um bailarino depende quase inteiramente da condução que o outro lhe dá, como por exemplo no pas de deux sobre a música Assum Branco (que por si só é referência ao Assum Preto, canção sobre pássaro cego de Luiz Gonzaga). São elementos que criam um jogo entre o visto e o não visto, entre a forte visualidade da dança e uma sensibilidade musical que está para além da visão.
Fotos: José Luiz Pederneiras