Notas sobre assistir quatro vezes o mesmo espetáculo

Por motivos de afeto e de pesquisa, escolhi e ao mesmo tempo me vi obrigada a assistir quatro vezes o mesmo espetáculo de dança. Trata-se da segunda parte da temporada Tempo de Travessia, da São Paulo Companhia de Dança (SPCD) que, como na primeira parte apresentada no mês de junho, trazia um clássico e um contemporâneo: Giselle – Ato II, em remontagem de Lars von Cauwenbergh e a coreografia Agora, de Cassi Abranches. Dessas duas, a segunda é a obra que é objeto de estudo do meu mestrado em música pela Unicamp.

Depois de mais de um ano com poucos e raros contatos com dança ao vivo, o olho precisava reacostumar-se, reaquecer, quase que reaprender a olhar corpos em movimento, e a fazer a conexão entre o que se vê e o que se ouve. Os clássicos são gentis com a nossa percepção: o olho e o ouvido são conduzidos pelos elementos de cena e pelo encadeamento do enredo. Isso sem contar a ação da memória, porque quando já se conhece o repertório fica, claramente, mais fácil de acompanhá-lo em cena. Voltar aos clássicos é seguro e reconfortante, principalmente em tempos de instabilidade e incerteza como os que vivemos hoje.

Minha situação com Agora, no entanto, foi muito diferente. Acostumada a assistir a gravação em vídeo editada pela SPCD (que tem seu modo próprio de conduzir a percepção), tive um choque de realidade com a proporção do teatro – muito maior do que a tela do meu computador – e com a pulsante energia que se recebe ao ver de perto tantos corpos em movimento. Tudo parecia rápido demais: os passos da coreografia, as mudanças de colocação no palco e até o tempo total da obra me pareceu menor que os vinte e um minutos do vídeo que eu assistia. Eu tinha dificuldade em acompanhar o ritmo intenso do que acontecia em cena.

Na segunda e terceira vez, optei por sentar-me mais longe do palco, e os desenhos coreográficos foram ficando mais claros. Ao vivo é mais gostoso e mais fácil entender o funcionamento espacial da coreografia. Vi luzes e cores que eu nunca tinha percebido na gravação em vídeo. Na quarta vez, experimentei assistir contando de um a oito do começo ao fim: o movimento dos corpos ficou mais claro, os ritmos se tornaram tão visuais quanto auditivos e eu me senti bailarina, como se estivesse dançando também.

Por fim, a mente fica com um emaranhado de imagens do gravado e do palco, e com a sensação de que pesquisar é uma forma de presença. De estar plena e verdadeiramente presente. Aprofundar-se cada vez mais na compreensão e na proximidade com uma obra artística é um prazer e um privilégio. Pesquisar é uma maneira de realmente estar no aqui e no agora.

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