2021 foi um ano de imprevistos para o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP). Alguns imprevistos ruins, como o longo hiato sem direção que antecedeu a entrada da nova diretora, Cassi Abranches. Outros positivos e surpreendentes, como o encerramento do ano de 2021 em Composição #3. Trata-se da tradicional mostra coreográfica do Balé, que apresentou os ttrabalhos de três bailarinos do Balé da Cidade com música composta sob medida por quatro músicos da Orquestra Sinfônica Municipal (OSM). Apesar dos altos e baixos, o BCSP termina no topo: Composição #3 foi apresentado na cúpula do Theatro Municipal.
Não pretendo passar o resto desse texto enaltecendo a produção, não é desse tipo de “topo” que quero tratar. Para elogios e críticas, recomendo BCSP na Cúpula, por Henrique Rochelle. Prefiro tratar das relações de hierarquia entre artistas que foram reveladas por essa produção.
Composição #3 está permeada por modos não convencionais de se fazer dança. Isso se revela na escolha do espaço – a cúpula -, na escolha dos músicos e no trabalho de ensaio dos bailarinos e regência da música. Essas quebras do comum colocam a arte da dança e seus atuantes em lugares que não são tradicionalmente ocupados por eles, gerando pequenos abalos nas rígidas estruturas hierárquicas que os envolvem.

Embora o Balé da Cidade tenha, em contrato, o compromisso de apresentar ao menos dois programas com a OSM por ano, eles geralmente são feitos com música já composta (como em A Sagração da Primavera, dirigida por Ismael Ivo em 2018), ou então com compositores convidados, com pouco ou nenhum vínculo com o TMSP (como em A Casa e Transe, com música de Ed Côrtez e de Matresanch, respectivamente). Em Composição #3 foi diferente, pois os músicos da própria OSM foram convidados a compor para o Balé.
Dentre toda a OSM, foram a violinista Helena Piccazio, a percussionista Márcia Fernandes, o contrabaixista Sanderson Cortez Paz e o pianista Vinicius Frate que aceitaram o desafio. É sintomático que, dentre toda a orquestra, apenas quatro músicos tenham se envolvido no projeto. Isso é prova da cisão que existe entre esses dois corpos artísticos do Theatro.
OSM e BCSP se separam tanto por questões burocráticas quanto por questões de repertório: a Orquestra mantém repertório tradicional, enquanto o Balé sempre teve veias contemporâneas. Ou seja: o uso de música pronta como na Sagração de 2018 facilita a participação da Orquestra, e o convite a compositores alheios ao Theatro favorece as intenções contemporâneas do Balé. É mais fácil aceitar essa divisão e trabalhar como grupos independentes, mas o novo só surge a partir dos corajosos que transitam entre os dois mundos.
Em Composição #3, esse trânsito se mostrou altamente frutífero. Em colaboração com Fernanda Bueno, Fábio Pinheiro e Márcio Filho, bailarinos do BCSP que foram convidados a coreografar, houveram trocas criativas que aproximavam a prática musical da dança que acontecia em cena. Essa proximidade é resultado direto da proposta oferecida aos músicos.
Em mais de 50 anos de Balé da Cidade é a primeira vez que os artistas da dança trabalham com músicos da orquestra sem a intermediação de um regente. Porém, com pouco tempo de ensaio e estruturas musicais complexas, o potencial de desentendimentos entre músicos e bailarinos é alto. É aí que a intermediação da regência se torna essencial, e nesse caso ela foi inusitadamente feita por uma bailarina e ensaiadora: Carolina Franco.

O gesto de Carolina era claramente diferente do gesto treinado dos regentes: tinha mais envolvimento de corpo, mais quadril, e muito, muito mais olhar para o que os bailarinos estavam fazendo. Por conhecer as coreografias com a profundidade de que as ensaiou, ela conseguiu transmitir aos músicos informações e necessidades coreográficas que regentes tradicionais levariam muito mais tempo para reconhecer e compreender.
Aliás, foram os músicos que pediram pela regência de uma bailarina, foram eles que perceberam que uma técnica de regência tradicional em nada contribuiria com a situação. Foi assim que o posto de regente, um do cargos mais altos na hierarquia musical, foi tomado pela ensaiadora do Balé da Cidade justamente na cúpula do Theatro Municipal. Isso deve ter ferido o ego dos regentes, pois o nome de Carolina Franco não surgiu nos créditos de Composição #3 com a pompa do título de regente, mas como condutora musical…
Porém por reger de corpo inteiro, dava para perceber que, por dentro, Carolina também dançava. E isso chamava a atenção do olhar da plateia, algo que provavelmente não era desejado ou previsto pelos coreógrafos e diretores do programa. Geralmente entende-se que os músicos devam ser “invisíveis”, vestindo-se de preto para fundirem-se aos panos de fundo, dando toda visibilidade aos bailarinos. No entanto, nesse caso pareceu justo dar um pouco de visibilidade aos músicos em nome de uma relação mais estreita entre entre o som e o movimento.
Fica a vontade de assistir novamente, e a torcida para que os experimentos da mostra coreográfica se tornem repertório do Balé da Cidade. Fica o desejo de que mais colaborações incomuns como essa ocorram entre BCSP e OSM. Fica a esperança de que novos encontros entre quem faz música e quem faz dança ocorram fora das linhas traçadas pelas instituições e pelas tradições.

Todas as fotos são de Rafael Salvador (Instagram: @rafael_salvador).