A história de ‘Jeux’, de Claude Debussy

Texto originalmente publicado em BBC Music Magazine. Tradução de Tatiana Avanço.

É de se duvidar que qualquer outro teatro tenha experienciado poucas semanas tão marcantes quanto o recém aberto Théâtre des Champs-Elysées, na cidade de Paris em maio de 1913. Esse era o contexto em 29 de maio, na estreia mais notória de todas: A Sagração da Primavera, de Stravinsky, envolvida numa balbúrdia que ofuscou duas outras obras diferentes.

A primeira performance parisiense da única e sublime ópera de Fauré, Pénélope, foi em dez de maio, dois dias antes do 68º aniversário do compositor. Cinco dias depois, os Balés Russos de Diaghilev desvelaram uma obra que viria a ser o último trabalho orquestral completo de Debussy: Jeux. Esse “poème dansé” chegaria a ser visto como tão importante quanto a Sagração em si, porém ser eclipsado pela recepção do “tour de force” de Stravinsky foi apenas um dos fatores, entre muitos, trabalhando contra um bom começo de Jeux.

Levaram 40 anos para que a significância de Jeux fosse reconhecida. Enquanto os avanços de Stravinsky nos pegam pelo pescoço, e os trabalhos expressionistas de Schoenberg gritam suas angústias, Jeux é subestimada e inundada de luz. É cromática, mas nunca rude, ritmicamente complexa porém lépida e graciosa. Analisá-la é como tentar capturar um feixe de respingos.

Primeira página da grade orquestral composta por Claude Debussy para Jeux.

Aquilo que Debussy chama de “belo pesadelo” da Sagração de Stravinsky poderia jamais ser possível sem a liberdade harmônica dos trabalhos iniciais dos franceses. Porém ao realizar o ideal orquestral de Debussy, Jeux deixou lições para a geração de compositores radicais do pós-guerra em sua fluidez de forma. Mais que usar forma para gerar unidade e integração, a partitura de Debussy explora descontinuidade, com mais de sessenta alterações de tempo, motivos em constante fluxo e cores orquestrais caleidoscópicas – e ainda assim há uma coerência quase invisível.

Como em Pinóquio, Jeux destranca discretamente a porta para o caminho em que os compositores subsequentes elaborariam suas composições como uma colagem. Isso pode ser ouvido nos trabalhos de maturidade de Messiaen, enquanto Stockhausen agradecia a Jeux por ser um passo crucial em direção à “forma momento” que dá suporte a muitas de suas peças, e Ligeti faz eco a esse sentimento. Como colocado por Boulez, “a organização geral [de Jeux] é tão mutável instante por instante quanto é homogênea em seu desenvolvimento”.

Fotos originais do programa de estreia de Jeux.

O título espelha as ambiguidades do cenário, no qual um garoto e duas garotas estão buscando por uma bola de tênis, mas embarcam em outros jogos, primeiramente infantis e depois mais amorosos. Boulez descreveu Jeux como “Prelúdio à Tarde de um Fauno em roupas de esporte”, refletindo a afinidade musical que Jeux tinha com a prévia obra prima de Debussy, e os ecos desse balé com as ninfas buscando pelo fauno na coreografia de Vaslav Nijinsky para Prelúdio à Tarde de um Fauno, produzida em maio de 1912. Um mês depois, Debussy foi persuadido a escrever uma nova obra para os Balés Russos. Ele estava relutante no início, e em um telegrama para Diaghilev declarava toscamente que “Enredo do balé Jeux é idiota, não me interesso”, porém um pagamento em dobro e o abandono da ideia de Nijinsky de um acidente aéreo ao final do balé evidentemente impulsionaram uma mudança de intenções.

Uma vez comprometido, Debussy escreveu o esboço inicial de Jeux em uma velocidade incomum, em aproximadamente um mês, de julho a agosto de 1912, contando a André Caplet que ele precisava ‘encontrar uma orquestra “sem pés” para essa música’. Debussy recusou-se a deixar Diaghilev e Nijinsky ouvirem sua obra em progresso, porque “não desejava que esses bárbaros enfiassem seus narizes em meus experimentos pessoais de química!”. Debussy, mais tarde, viu fundamento em seu cuidado, contando a Gabriel Pierné que Nijinsky, “com sua coreografia cruel e bárbara […] pisoteou meus pobres ritmos como se fossem mato”.

Vaslav Nijinsky em Jeux.

Em defesa de Nijinsky, é importante lembrar que ele não ouviu a grade orquestral até bem tarde naquele dia. Enquanto a versão para dois pianos da Sagração oferecia os bons sabores desse que é o mais percussivo dos balés, Jeux ao piano se distanciava demais das texturas orquestrais diáfanas de Debussy. Essa questão só foi agravada pelas preparações frenéticas para a Sagração, que consumiam muito tempo de ensaio. Para compor com tudo isso, uma dos três dançarinos de Jeux, Bronislava – a irmã de Nijinsky – descobriu que estava grávida logo antes da estreia.

A estreia de Jeux não provocou alvoroço, nenhum escândalo do tipo que acompanhou a coreografia de Nijinsky para Prelúdio à Tarde de um Fauno, e certamente nenhum buquê ou elogios. Ao invés disso, houve incompreensão para com a dança, enquanto que a música mal havia sido notada. Agora, essa indiferença tem sido substituída pelo reconhecimento de um trabalho que sintetiza a palavra sublime. Ouvir Jeux, assim que seus compassos de abertura hesitantes são interrompidos por aqueles acordes indescritíveis abrindo a porta para outro universo, é de se pensar como aqueles sentados no Théâtre des Champs-Elysées quase um século atrás falharam em perceber o quão especiais também eram os jogos de Debussy?

Uma resposta para “A história de ‘Jeux’, de Claude Debussy”.

  1. Avatar de O tempo, o espaço, o noturno e a dança | movimentoesom

    […] de Diaghilev, passando pelas sonoridades difusas de L’après midi d’un faune (1911) e Jeux (1913). Embora a própria Clair de lune date de antes desse período (1903), já é possível […]

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