Rudolf Nureyev: o bailarino que se tornou regente

Faz trinta anos que um dos maiores bailarinos do século XX, Rudolf Nureyev (1938-1993), faleceu em decorrência das complicações da AIDS aos 54 anos. Forçado a interromper precocemente sua carreira na dança, Nureyev passou vários anos ocultando as consequências da doença sobre seu corpo, devido a todo o estigma que rondava a AIDS durante a década de 1980.

Como naquela época ainda não havia tratamentos eficazes, Nureyev foi buscar forças na ampliação de sua carreira artística para além da dança, passando pelo teatro, cinema e finalmente pelo universo da regência – regendo, inclusive, um de seus próprios balés. O texto abaixo, traduzido por Tatiana Avanço do Rudolf Nureyev Foundation para o site Movimento e Som (www.movimentoesom.com) e para o Portal MUD visa despertar a conscientização para o Dia Mundial de Luta contra a AIDS e demonstrar que o intercâmbio artístico entre música e dança pode ser fonte de potência de vida.


Se Rudolf Nureyev (1938-1993) não tivesse sido um bailarino, ele teria sido um músico. Ele descobriu a música em sua mais tenra infância. Em Ufa, de ouvido colado no rádio que tocava a música de Tchaikovsky, o pequeno menino escapava de um mundo onde reinavam a miséria e a fome. Primeiro ele dançou em grupos folclóricos, cuja música rítmica e expressiva estimulava seu temperamento enérgico. Antes de completar dez anos de idade Nureyev quis aprender piano, mas em vez disso seu pai recomendou o acordeão: “você pode levá-lo com você pra qualquer lugar”.

No entanto, seu sonho só se tornou realidade quando ele entrou na Academia Vaganova de Balé Russo, em Leningrado, onde o aprendizado de um instrumento musical era obrigatório. Ele frequentava concertos e comprava o máximo de partituras que podia de uma antiga loja de música. Quando não encontrava alguém para tocá-las para ele, tentava ler a música sozinho. Ele ficava intoxicado pela música de Mozart, Beethoven, Chopin, etc. Os balés de Nureyev se caracterizaram pela sua extrema sensibilidade enraizada à música e sua capacidade de transmitir cada nuance da partitura através de seu corpo. Ele dançava a música mais do que dançava ao som dela.

Sua carreira como regente de orquestra foi encorajada por três dos melhores regentes de seu tempo: Karl Böhm, depois Herbert von Karajan e, por fim, Leonard Bernstein. Este último aconselhou-o a assistir aulas de regência na Julliard School. No entanto no final dos anos 1990, quando ele estava seriamente considerando esse treinamento, seus três mentores já haviam falecido. Ele abraçou a regência com a mesma determinação que tinha pelo balé. Levava consigo um teclado portátil a qualquer lugar que fosse, para praticar O cravo bem temperado de Johann Sebastian Bach. Todos os seus companheiros da turnê Nureyev and Friends lembram de ter carregado o estojo pequeno, mas pesado, contendo o precioso teclado.

Wilhelm Hübner, professor da Academia de Música e ex-violinista da Orquestra Filarmônica de Viena, assumiu a orientação de Nureyev. Com vários músicos da Filarmônica, Nureyev praticou incansavelmente para dominar essa nova disciplina. Hübner ficou surpreso com a habilidade e a velocidade de assimilação que seu aluno possuía. Tendo fundado a Residenz Orchester dois anos antes, Hübner preparou Nureyev para seu primeiro concerto, com a sinfonia conhecida como A Caça, de Joseph Haydn, a Serenata para orquestra de cordas de Piotr Ilytch Tchaikovsky e o Concerto para violino K218 de Wolfgang Amadeus Mozart. Os músicos da orquestra não estavam particularmente entusiasmados em serem usados como cobaias pelo bailarino prestigiado, que estava em busca de um novo rumo para seu talento. No entanto, eles respeitavam a seriedade na atitude do novo regente e perdoavam sua inexperiência graças à sua personalidade, bem como sua humildade e desejo de servir à música.

Michel Sassoon, o regente que dirigiu inúmeras apresentações dos balés dançados por Nureyev, especialmente a versão de Nureyev do “Romeu e Julieta” de Prokofiev e a Ópera Scala em Milão nos anos 1980, disse: “Tivemos uma discussão acalorada quando eu me recusei a mudar os tempos, pois eram os que Prokofiev desejava. Nureyev, finalmente, adaptou sua coreografia para que estivesse em harmonia com a partitura do compositor. Ele tinha um grande respeito pela música. Ele provavelmente não teria se tornado um grande maestro, já que não sabia como se comunicar com os músicos, mas se tivesse começado com a música, certamente teria sido um dos maiores.”

Após vários meses de trabalho, Nureyev fez sua estreia em junho de 1991, regendo as obras citadas acima diante de uma plateia de várias centenas de pessoas no Palais Auersperg. Nureyev, doente, nunca admitiria ter sido derrotado, e essa era a mensagem que ele transmitia ao mundo enquanto abraçava essa nova carreira. No repertório, ele acrescentou Apollon Musagète, de Igor de Stravinsky, que ele havia dançado centenas de vezes, a terceira sinfonia de Ludwig van Beethoven Eroica e o Concerto para clarinete K622 de Wolfgang Amadeus Mozart. Peter Schmidl, um clarinetista que tocou várias vezes sob a direção de Nureyev, disse: “Ele regia com enorme sensibilidade e permanecia totalmente modesto. Podíamos sentir o dinamismo do balé em sua forma de reger”. Como poderia ser diferente?

Sua carreira como regente de orquestra durou pouco mais de um ano porém mais uma vez, dada sua inexperiência e sua doença, surpreendeu aqueles próximos a ele, bem como seu público, com o número de concertos realizados. Ele se apresentou em Viena, Atenas, Budapeste, Deauville, Ravello, Czestochowa na Polônia, Nova York, Salt Lake City e São Francisco. Em março de 1992, ele foi a Kazan, a capital do Tartaristão, mas sua doença o obrigou a voltar correndo para Paris para passar por uma cirurgia.

Foi a ideia de reger “Romeu e Julieta” de Sergei Prokofiev no Metropolitan Opera House, em Nova York, que lhe deu a energia para sobreviver. Em 6 de maio de 1992, ele regeu “Romeu e Julieta”, que foi dançado por Sylvie Guillem e Laurent Hilaire junto com os bailarinos da ABT. Garantimos que todos, público e bailarinos igualmente, foram completamente cativados pelo que aconteceu por trás da estante de música do regente.

Sua última aparição como regente ocorreu na Universidade de Berkeley, em São Francisco, em 17 de julho de 1992. Até sua morte, ele recebeu muitas ofertas para reger balés, mas não pôde realizá-las. Seu estado de saúde o forçou a desistir de seu sonho de reger a estreia de “La Bayadère” na Ópera de Paris em 8 de outubro de 1992.

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