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15 de junho
Depois das mordidas dos ensaios passados, Joaquim Tomé vomita os primeiros resultados de sua “digestão” sonora. Ele traz um grande áudio de cerca de 40 minutos, e é a primeira vez que Claudia e Armando deixam de dançar no silêncio para ensaiar com sonoridades.
Um ruído grave e contínuo, ao qual sobrepõem-se sons de vento, água, crianças, vozes em francês e inglês, o piano dissonante, repetitivo e contemplativo Gurdjieff/De Hartmann (sob interpretação de Keith Jarrett), música de festa, um porco e música funeral de Henry Purcell. Elementos que se mesclam entre si e se mesclam à dança, numa metamorfose sonora constante.
A partir de então as metamorfoses da dança, que antes eram determinadas somente pelo corpo, passam a ser irremediavelmente determinadas pelo tempo musical. Isso, por um lado, gera desconforto, mas por outro gera o alívio de não ter que sustentar a presença cênica estritamente por meio da dança.
22 de junho
Primeiro ensaio geral com música. Joaquim e Hernandes assistem e compartilham suas impressões do diálogo entre a música e a dança. De sua proximidade como compositor, Joaquim tem a impressão inicial de verborragia, como se o contraste entre o silêncio total de antes e as metamorfoses sonoras de agora fosse grande demais. Planeja, então, fazer transições mais suaves entre as diferentes sonoridades.
Embora Joaquim tenha composto uma trilha que roteiriza os momentos coreográficos, Claudia e Armando encontram liberdade em contrariá-la, criando diferenças entre as durações sonoras e as durações dançadas.
A mordida coreográfica final de Claudia e Armando foi pintada de tonalidades sagradas pela música funeral e coral de Henry Purcell. Embora esta escolha sonora tenha vindo inicialmente do filme Laranja Mecânica (1972) trata-se de música fúnebre e religiosa, mas que por ser anglicana não carrega o peso de culpa e juízo final do tradicional requiem católico. É uma distinção importante, pois o presente ritual coreográfico claramente não é sobre culpa e sim sobre travessia, encontro e celebração, e por isso a música de Purcell é bem vinda.
O piano de Gurdjieff/De Hartmann, por sua vez, traz uma outra espiritualidade: mística e conectada a uma tradição de dança ritual. Se Purcell aponta para o ocidente, Gurdjieff/De Hartmann aponta para o oriente, constituindo uma paisagem sonora de territorialidade ampla e, de certo modo, indefinida.
27 de junho
Ensaio virtual com Ana Mondini. As cadeiras ainda traçam labirintos no espaço dançado, mas questiona-se sobre a visibilidade do público, que por estar dentro da cena pode nem sempre ter o melhor ponto de vista. Valeria a pena sacrificar a visão em nome da participação da plateia?
À parte disso, Ana assiste o ensaio e compartilha mais reflexões sobre dança, vida e tempo.
“Todos somos feitos de metades e fragmentos, e nossa grande busca ao longo da vida é o caminho de volta para a criação, não para o criador, mas para a nossa própria criação.”
“Nós somos eternamente ancestrais de nós mesmos, de quem fomos ontem e não somos mais hoje.”
Ana Mondini
Claudia e Armando questionam de novo se Ana enxerga-se dançando em trio junto com eles em setembro, e ela sempre diz que sim. A discordância dela não está no “se” e sim no “como”, nas possíveis dinâmicas dos ensaios que virão.
“Odeio ensaios longos. A gente estudou tanto pra quê, pra ficar treinando a experiência?”
“A exaustão não é necessária, trata-se de uma história de vida e não de esforço para viver: é sobre nós. Não há sentido em se estrupiar, é preciso dosar a energia e afinar a arte de fazer arte.”
Ana Mondini
Armando e Hernandes, no entanto, questionam sobre a exaustão, a intensa energia dispendida ao dançar: seria ela uma característica essencial do jeito de ser de Claudia e Armando?
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