9. Mordidas para uma metamorfose | iN SAiO

Páginas de um diário de bordo do processo criativo de dança de Claudia Palma, Armando Aurich e Ana Mondini na iN SAiO cia. de Artes

8. Labirinto dos sentidos | iN SAiO


04 de maio

Em Escute as feras, a autora leva uma mordida de urso que desfigura seu rosto, mas isso não é uma tragédia, é um encontro. De um modo que se aproxima do antropofágico, um se alimenta do outro e assim ambos se transformam. A mordida passa a ser um elemento coreográfico da criação de Claudia, Armando e Ana, e nesse momento localiza-se logo ao fim do trabalho. Morder a pele, morder a roupa: explora-se a mordida como movimento total do corpo e como entrelaçamento com o corpo do outro. Uma questão fica suspensa, incômoda: o que virá depois da mordida?

09 de maio

Dia de ensaio aberto para a iN SAiO, com Cris Ávila, Natalia Franciscone e Hernandes de Oliveira.

Hernandes será responsável pela elaboração da luz e da cenografia, e hoje é seu primeiro contato com o trabalho. Ele relaciona a instabilidade e as espirais da coreografia com a imagem de um furacão e dos escombros que ele deixa pra trás. Hernandes pensa em trazer essa instabilidade fisicamente para o público, preparando cadeiras tortas e bambas intercaladas com alguns bancos. Essas primeiras visões de Hernandes pendem mais para a ideia de instabilidade do que de celebração.

Na dança, um elemento físico se destaca e também vai mais para a instabilidade que para a celebração: o cansaço. A coreografia ritual que Claudia e Armando realizam é intensa, e em seu ápice ela atinge tanto a ideia de transcendência quanto a própria exaustão. Cabe agora encontrar uma medida de intensidade que não sobreponha a leveza.

11 de maio

Ainda não está decidido o que dançar “depois” da mordida, mas enquanto isso trabalha-se o seu “antes”. Um trecho do livro Escute as feras será citado em cena, e experimenta-se de que modo a voz pode dar vida ao texto: essa voz é pra quem? Pra perto, pra longe, pra um ou pra todos?

Sente-se que a voz sutil expressa melhor que a voz projetada. Claudia e Armando ensaiam falar o texto ao mesmo tempo, mas em defasagem e reorganização das frases, dando a ele circularidade, fluxo contínuo e oportunidades de compreensão pela repetição.

Conforme o texto vai perdendo sua linearidade, eles lembram que o próprio trabalho não é linear e que portanto a mordida, mesmo sendo no livro um elemento inicial de transformação, não é um elemento de narrativa a ser continuado: sua suspensão é sua potência.

18 de maio

Dia de ensaio virtual com Ana Mondini e presença de Joaquim Tomé, que fará a música do trabalho. Ao assistir, Ana compartilha algumas observações técnicas, mas principalmente apontamentos poéticos:

“Imagine um peixe nadando dentro de você, que se esbarra nas paredes do seu corpo.”

“O mundo animal é o mundo dos sentidos. Humanizar, porém, é preciso, para que nós nos reconheçamos no trabalho.”

“A abstração, em excesso, abre portas em que tudo se dilui. Não é só para ser assistido, é para ser compartilhado.”

“Algumas frequências podem até ser inaudíveis, mas mesmo assim nos movem. O som é parte de uma vibração maior que está sendo criada.”

“Todo trabalho tem que ter um céu azul, se não ele afunda. Onde haverá esse ponto de humanidade?”

Ana Mondini

Diante desse panorama de imagens estéticas, Joaquim compreende que a música não pode ser protagonista da cena, mas sim uma ênfase e um ponto de vista psicológico sobre aquilo que já está acontecendo na dança. Deste modo, a música terá caráter de trilha e de roteiro para o corpo e oscilará entre conduzir a cena e retirar-se dela. O silêncio e as vozes de Claudia e Armando também são (e serão) música.

Joaquim lamenta que, no Brasil, o hábito de compor para dança seja pouco praticado. O valor dessa prática reside justamente na possibilidade de amplificar e redirecionar os sentidos do movimento por meio do som. Joaquim quer fazer com que a mordida coreográfica, que em silêncio traz um peso de dor, se torne poética ou até mesmo patética dependendo dos tons que o som lhe der.

25 de maio

Claudia e Armando encontram, em suas playlists pessoais, ideias vagas do que pode ser a música de suas danças. Entre Johann Sebastian Bach e Max Richter, as cordas de orquestra soam agradáveis, mas não por inteiro.

Joaquim e Hernandes morderam essa dança nos ensaios passados e foram pra casa processar suas antropofagias em forma de som e de cenografia. Seus olhares externos são aguardados, pois serão necessários e determinantes para que a coreografia se condense e ganhe ainda mais camadas de sentido.


Em breve: próxima página… →

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