Exercicrítica #7: Ngali… —  Odisseia — Vai (SPCD)

02/11/2019

Inaugurando a segunda temporada de 2019, a SPCD nos apresenta um primeiro programa mesclando temas atemporais, como a relação amorosa, com temas contemporâneos como os fluxos migratórios e a sobrevivência em um mundo pós apocalíptico.

Fortemente baseada na dança de salão, Ngali… (2016) já é peça consagrada do repertório da companhia. Embalada por toda uma coletânea da melhor canção popular brasileira, Ngali… encontra na música não somente um suporte para a dança, mas uma expressão subjetiva em primeira pessoa, à maneira de um eu lírico. A música também participa da composição de uma atmosfera fortemente latina, passando longe do perigo de cair em um exotismo barato.

O entrelaçamento, a fusão de corpos de casais e, por vezes, trisais, é performado com uma fluidez técnica admirável, retratando assim com êxito o significado da palavra título da obra, que não tem correspondentes em outros idiomas falados mas pôde ser traduzida em idioma dançado: “nós dois, incluindo você” (ngali é palavra originada do aborígene da Austrália Ocidental).

A migração, a transição, a partida esperançosa, são fios condutores da narrativa cênica de Odisseia (2018), que brinca com a capacidade da arte de nos transportar para outros lugares: para a praia, para o mar, e quase podemos sentir o frescor da brisa praiana. Aqui temos uma construção sonora mais ousada, segmentada, que mescla a ambientação marítima com Bach e Villa-Lobos, traçando com clareza o paralelo entre a Paixão segundo São Mateus do compositor barroco e as clássicas Bachianas Brasileiras. Pode-se inclusive falar de uma estrutura musical “migratória”, que transita entre Alemanha e Brasil como que por meio do oceano e da tempestade.

É sempre revitalizante presenciar momentos em que o som extrapola o âmbito dos alto-falantes e se apresenta vivo, fresco, livre da fixidez imutável da música gravada. Os objetos de cena utilizados por Jöelle Bouvier cumprem essa função, por serem elementos não somente visuais mas também sonoros: as extensas lonas plásticas, além de proporcionarem ora fluidez visual, ora a inquietação tempestuosa, estão ali também para serem ouvidas e para transmutar a ideia de água e ar em elementos que, de tão sonoros e visíveis se tornam quase táteis ao espectador.

Vai (2019), de Shamel Pitts, também apela à sinestesia ao coordenar dança, luz e música, porém com ares bem menos introspectivos que a obra anterior. O coreógrafo busca retratar a potência criativa do ser humano frente a um caos apocalíptico, e não por acaso se vale da remixagem e da edição sonora, traçando uma metáfora de recriação que percorre roteiro e sonoplastia. A obra de Pitts possui uma energia física eufórica, festiva, permeada por momentos de leveza e esperança, todos eles expressados de maneira altamente sensível pelos bailarinos da SPCD.

Uma relação curiosa entre as três obras da noite é que todas elas tem uma finalização inconclusiva, como se terminassem pela simples limitação espaço-temporal, mas que poderiam durar ad infinitum. Essa duração quase eterna constrói a ilusão de que as obras continuam em nós, que as carregaremos e seguiremos reinterpretando-as na medida em que vivenciarmos concretamente as ideias que elas nos apresentam.

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