Manon: o balé com tópicos feministas

Texto de Martha Schabas, originalmente publicado em The Globe and Mail em 07 Nov 2014. Tradução de Tatiana Avanço.

A bailarina francesa Sylvie Guillem – uma das bailarinas mais influentes dos últimos trinta anos – tem uma página em seu site onde os nomes de seus balés favoritos formam um bloco único de texto. Quando você move o cursor sobre cada título, a sinopse do balé aparece em uma caixa à direita. Estas são as sinopses, de acordo com Guillem. Giselle: ela morre. Carmen: ela morre. Marguerite e Armand: Ela morre. Sissi: ela morre. O martírio de São Sebastião: Ela morre.  A Bela Adormecida: Ela dorme.  As Sílfides: Elas estão quase mortas.

Fãs do balé clássico precisam se acostumar com o fato de que as coisas não terminam bem para suas heroínas. Algumas vezes essas jovens mulheres são sortudas o suficiente para se casarem com seus belos pretendentes. Mais frequentemente, elas apenas terminam mortas. Sobre essas baixas expectativas, sempre estive pensando que Manon, de Kenneth MacMillan, estava numa categoria própria no que diz respeito ao seu problemático enredo feminista. O balé, cujo 40º aniversário neste ano [2014] está sendo marcado por uma remontagem de sua companhia natal (London’s Royal Ballet) e por uma produção que se inicia na noite de sábado em Toronto pelo National Ballet of Canada, é baseado no romance curto do século XIX Manon Lescaut, de Abbé Prévost. É MacMillan em sua melhor forma: ousado, corajoso, sensual, bem humorado e completamente sem sentimentalismo. É também uma obra que sintetiza a relação complicada do balé com o feminismo e propicia uma oportunidade de trazer e elevar a discussão sobre suas heroínas aos padrões do século XXI.

Se você tem visto a propagandas em Toronto para a produção de Manon pelo National Ballet – eles retratam uma bela mulher em um corset deitada sedutoramente sobre uma faixa de seda vermelha – você talvez se surpreenda ao conhecer a brutalidade do enredo do balé. Uma adolescente órfã está prestes a entrar em um convento quando seu irmão mais velho decide vendê-la para a prostituição. Manon é comprada por um velho homem rico (Monsieur G.M.), que lhe dá jóias e a exibe no bordel da região. Quando Monsieur G.M. fica com ciúmes do namorado de Manon, ele prende Manon como prostituta e a deporta para Louisiana. Lá, ela é estuprada pelo seu carcereiro e depois morre no dia seguinte por exaustão, exposição e, possivelmente, pelos ferimentos causados pelo estupro. Esse é um enredo que é um pouco difícil de reconciliar com a imagem provocativa da bailarina principal Xiao Nan Yu, pendurada nos postes de rua de Toronto. Uma moça morre após ser traficada e estuprada; nós vendemos sua história com uma imagem sexy.

A produção é estranhamente oportuna para uma cidade que está falando sobre cultura do estupro. Se há indícios de culpabilização da vítima no arco narrativo do romance de Prévost – com Manon tendo seu abandono apenas por ganância e desfrute de sua sexualidade – o que surpreende é que este quadro interpretativo não tenha sido desmantelado pela crítica contemporânea. Resenhas sobre a produção recente de Londres no Covent Garden ainda se referem, todas e com frequência, à personagem principal como uma garimpeira amoral, que prefere a luxúria depravada de G.M. ao invés da virtude do amor de seu namorado. Ainda mais surpreendente são algumas das discussões rasas e escolha de palavras sobre o tráfico e prostituição de Manon. Veja a crítica de Mark Monahan no The Daily Telegraph. Elogiando o trabalho de Marianela Nuñes no papel principal, ele se refere à cena do bordel como “um gangbang sinistro e gentil”, durante o qual Nunez parecia “completamente narcotizada por sua própria luxúria”. Isso é uma referência a um estupro coletivo pensado como uma travessura cômica em uma peça de Noel Coward. Estou surpresa que essa sentença tenha sido publicada.

Há uma discussão muito mais complexa a ser feita sobre Manon e sobre como o balé pode ou não esclarecer discussões contemporâneas sobre escolha, prostituição e coerção. Quando conversei com as três bailarinas principais do National Ballet que irão dançar o papel este mês – Greta Hodgkinson, Sonia Rodriguez e Jillian Vanstone – tive uma alternativa à narrativa de vítima. Todas as três artistas consideram Manon uma mulher pragmática. Hodgkinson salientou que Manon provavelmente não via mãos de negócios entre seu irmão e G.M. e que seu relacionamento privilegiado com G.M. a mantém fora do bordel e dos perigos vinculados a ele. “Eu não acho que ela necessariamente sente como se estivesse prostituindo a si mesma. Ela tem a chance de ter um caminho melhor na vida e o aproveita.”

Rodriguez sugere que, enquanto Manon é manipulada na prostituição pelo irmão no qual ela confia, há também um elemento de autodeterminação em jogo. “Penso que, em um mundo dominado por homens, a prostituição pode ser empoderadora para ela. Ela encontra um meio de controlar os homens ao seu redor. […] Uma vez que ela está completamente ciente de sua situação, acho que ela muito conscientemente diz:  Eu quero ser participante disso. Eu quero assumir a responsabilidade.”

Rodriguez rejeita a noção de que Manon é uma vítima, escolhendo, ao invés disso, vê-la como uma sobrevivente. Pergunto como ela concilia sua interpretação com o fato de que Manon termina morta em pântano. “Bem, nós não podemos mudar a história,” ela diz, rindo. Sugere que a morte de Manon não é excepcional, dado seu contexto socioeconômico e que, de uma perspectiva narrativa, isso pode não ser tão importante. “Vejo Manon lutando por sua vida durante o balé inteiro.”

Vanstone não pensa que podemos generalizar o inerente anti-feminismo no balé simplesmente devido a prevalência de mortes femininas. “Há espaço para reinterpretar as histórias antigas – a mulher pode ser interpretada de maneira bidimensional ou podem dar a ela mais vida e transformá-la em alguém que é mais compreensível e real. Não acho que a história de Manon glorifica sua vitimização de forma alguma.”

Tive a sorte de assistir o ensaio de Vanstone na semana passada, dançando o pas-de-deux do segundo ato. É um trecho de coreografia que mostra o quanto o balé pode se adaptar a estes tempos – é fluido, rápido, não estruturado e emocionalmente impiedoso, às vezes de uma beleza chocante, embora nunca pedante ou distanciada. Assistindo-o, concordei com Vanstone: Aqui há uma jovem mulher tentando assumir o controle sobre sua vida. Todas as três Manons são excelentes artistas e bailarinas de primeira classe – não tenho dúvida de que suas performances serão notáveis. Vamos torcer para que suas interpretações empoderadas possam transcender algumas das ambiguidades no enredo do balé.

Foto: Christopher Wahl.

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