O desenho encontra a dança e a dança encontra a música

Imagine que uma bailarina foi convidada por um grupo de desenhistas para participar de uma oficina de modelo vivo. Ela, então, chega no estúdio vestida da mesma maneira que para uma aula de balé: collant, meia calça, sapatilha, talvez uma saia. Até aí não encontramos problemas, já que o vestuário tradicional da dança clássica por si só favorece a visualização do corpo, sua anatomia, a propulsão muscular necessária à execução de cada movimento.

A bailarina , que ainda não tinha se aquecido, escolhe começar com posições simples, mantendo ambos os pés no chão em en dehors (1). Sempre mantendo-se parada, a bailarina vai progredindo para posições mais complexas, utilizando algumas elevações de perna. Porém a estaticidade, tão requerida para que os desenhistas observem cada detalhe das posições e possam desenhá-las com clareza, começa a ficar penosa para a bailarina. Seu corpo começa a pedir pelo movimento, pelo impulso que liga um passo ao outro, pois seu corpo jamais havia sido treinado para colocar todas aquelas posições em situação de imobilidade.

Ela, então, experimenta introduzir o movimento. Começando devagar, vai costurando passo com passo, mantendo fluidez entre eles. Os desenhistas respondem com pressa, eles já não tem mais tanto tempo de observação entre uma posição e outra, precisam se valer da memória e imprimi-la no papel o quanto antes, para que ela não se esvaia a partir da visualização da posição seguinte. Progressivamente pode-se observar que o desconforto mudou de dono: a baliarina agora é quem está confortável, improvisa pequenas sequências coreográficas enquanto que alguns desenhistas vão se aproximando do desespero por não mais conseguirem acompanhar a mutação constante daquilo que observam.

A partir de então os desenhistas podem ser classificados em dois grupos, de acordo com suas reações frente à bailarina em movimento. O primeiro grupo é o dos “tradicionais”: eles prezam pelo detalhe, gostam de dispor de tempo para observar o modelo e ficaram indignados com o novo comportamento que a bailarina estava apresentando, chegando a implorar em voz alta que ela voltasse a ficar parada, e enfatizavam o despreparo da artista para essa tarefa – tão nova – para a qual ela havia sido designada.

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Bailarina em quarta posição, de Edgar Degas

O segundo grupo é o dos “experimentais”: eles se sentiram desafiados pela proposição da bailarina, seus desenhos foram perdendo a minúcia e ganhando o dinamismo. Passaram a ter mais interesse pela exploração do gesto no desenho. Seus resultados tem um caráter esboçado, contudo mais próximos da experiência espaço-temporal que se tem ao assistir dança. Na verdade, seus desenhos ficaram mais temporais do que espaciais, tentando fundir em apenas uma página a mutabilidade de toda uma série de movimentos.

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“Candoco Rehearsal with Claire Cunningham”, de Sally McKay

Porém os “experimentais” eram minoria. Eles pareciam, na verdade, estar até incitando o caos ao endossar o comportamento da bailarina! Foi uma ruptura de status quo radical demais para aquela singela oficina de modelo vivo.

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Algumas artes se apropriam de outras. Absorvem-nas, e as tornam participantes de uma outra arte, porém essa participação tem limites, e os limites são determinados quase sempre pela arte “principal”, aquela que se apropriou da outra. A bailarina que descrevi não tinha plena consciência de que a dança entraria como arte “absorvida” pelo desenho e que, portanto, precisaria estar submetida às regras que as artes visuais determinam. Ela porém escolheu não se submeter mas sim puxar o cabo de guerra para si, o que necessariamente desestabilizou a arte “principal”. Essa desestabilização teve funções subjetivas diferentes em cada um dos artistas, podendo ser compreendida como insubordinação ou como oportunidade criativa.

Situações semelhantes acontecem no trato da dança com a música. Aqui, no entanto, a dança é quem detém o papel de arte “principal”, e a música se encontra a seu serviço. Cada linguagem de dança possui necessidades musicais específicas, necessárias à sua execução. Nesse caso o uso de música gravada é muito conveniente: exclui-se a variabilidade do elemento humano e obtém-se sempre o mesmo resultado “ideal”. O que nem sempre quer dizer ideal no âmbito artístico, mas sim no âmbito prático…

Quando um músico entra em cena, espera-se dele que entregue os resultados musicais adequados àquela prática de dança. Ele nem sempre sabe, musicalmente, o que se espera dele, já que são raríssimos os treinamentos técnicos disponíveis (pelo menos em âmbito nacional) aos músicos que decidem atuar nessa área. Se ele tiver muita disciplina (e sorte!), talvez seja bem sucedido na tarefa e se enquadre no grupo dos “tradicionais”, realizando um trabalho enquadrado dentro de tudo o que os bailarinos esperavam. Caso esteja em busca de uma maneira de atuar musicalmente à dança, pode ser que ele caia no campo dos “experimentais” mesmo sem ter plena consciência disso, o que pode gerar uma série de desentendimentos entre ele e os bailarinos! Caberia a esses últimos aceitar as proposições criativas do músico rebelde? Ou exigir que ele entregue aquilo que se espera dele? Aliás, é possível que o músico compreenda por meio dos bailarinos exatamente aquilo que se espera dele? Os bailarinos conseguem comunicar com clareza aquilo que querem da música?

São questões complexas que requerem respostas elaboradas, pensadas caso a caso. Mas fica muito claro que há grandes potenciais criativos nesses momentos de disputa hierárquica entre a dança e a música, entre arte “principal” e arte “absorvida”. Talvez caiba aos artistas envolvidos a ousadia e a prudência em saber aproveitá-los.

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Agradecimentos especiais a Jorge Luiz Schroeder, meu atual orientador de Mestrado, pela ideia inicial que deu origem a esse ensaio.

(1) en dehors: Para fora. Designa a rotação externa da perna que faz com que os pés fiquem voltados para fora.

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