Dançar em vários silêncios

4'33
4’33”, de John Cage

Um bailarino dança no silêncio. Dança dentro do silêncio, preenchendo-o com carne e ossos, com sangue e com suor. O que parecia vazio ganhou corpo. Seu silêncio tem qualidades, não é oco de conteúdo, é elemento audível mesmo que rarefeito. É expressivo.

A moça parou pra ver a dança dele, mas estranhou o silêncio. Sentia falta de som para a dança. Parecia que, a qualquer momento, o som ia ter que aparecer. Silêncio de tensão e de expectativa. Ela ficava cada vez mais imóvel e atenta, como se o silêncio fosse uma frágil peça de porcelana que pudesse se quebrar com o menor dos movimentos.

Um velho senhor assumiu o papel de guardião da quietude. “Shhhhh!”, disse ele quando alguém cochichou ao seu lado. Aquele silêncio lhe pertencia como que por direito. Não lhe soava justo que os outros o perturbassem com ruídos impertinentes. Porém o senhor não tinha tanta consciência de que suas intervenções faziam ainda mais barulho que as conversas dos outros. Ele havia se dado o direito de quebrar o silêncio em nome de um silêncio maior.

Um casal, o mesmo que cochichava ao lado daquele senhor, emudeceu. Haviam chegado atrasados e discutiam se o som já tinha aparecido ou se ainda ia aparecer, mas depois da reclamação do senhor esse debate pareceu não ter mais relevância. Focaram no bailarino. E quem tinha ouvidos nos olhos não mais sentiu necessidade de música: o movimento bastava por si só, com articulações ora rodopiantes, ora angulosas, ora aéreas, ora terrestres, formando ritmos complexos e inauditos.

O bailarino parou, deu dois passos para frente, corpo aberto para o público. Estava implícito que ele havia terminado. Aplausos reticentes. Ele agradeceu e saiu de cena, mas não sem antes observar um pouco as expressões de quem o assistia. A curiosidade em conhecer o que aquele silêncio carregava o perseguiu por vários dias.

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