Balé da Cidade de São Paulo na Semana de 22: comemorações e questionamentos

O ano é 2022, e a Semana de Arte Moderna de 1922 completa cem anos. O Theatro Municipal de São Paulo, que foi a sede da Semana, acaba de apresentar uma série de eventos comemorativos e reflexivos a respeito do modernismo nas artes. Dentre eles, o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP) apresenta duas obras: Muyraquytã e Isso dá um Baile.

Porém , frente à atual situação política do país e à instabilidade recente do próprio BCSP, fica difícil pensar em tons de comemoração. Se nas celebrações da música erudita, por exemplo, bastou reviver as Bachianas e outras peças de Villa-Lobos, o mesmo não poderia acontecer com a dança, arte quase completamente ausente na Semana de 1922. Naquela época ainda não havia bailarinos brasileiros, muito menos escolas de bailados, e tudo o que se sabe é que a bailarina Yvonne Daumerie teria feito uma breve homenagem a Isadora Duncan. Como então comemorar com dança uma Semana de Arte Moderna que (quase) não teve dança?

Duas ideias de Mário de Andrade parecem conduzir a resposta do BCSP à essa questão. Primeiro, a absorção e transformação da cultura popular para se tornar arte de palcos. Segundo, a ideia de que “o passado é lição para refletir, não para repetir”. Ou seja: absorver e transformar para refletir sobre o ontem e sobre hoje.

É por isso que Muyraquytã não é uma coreografia de comemoração, e sim de mais questionamentos. Da tradicional canção Peixe Vivo, a música destaca uma pergunta cantada repetidas vezes por Dona Onete: “Como poderei viver?”. É pergunta para refletir sobre as identidades que, tanto em 1922 quanto em 2022, ainda lutam para simplesmente viver.

Muyraquytã. Foto: Rafael Salvador

Muyraquytã materializa em voz e corpo a negritude de seus criadores: o coreógrafo Allan Falieri, o músico Mbé e a poeta Ryane Leão. As palavras fortes da poeta, narradas ao longo da coreografia, trazem a potência criadora e transgressora do feminino. Por sua vez, a ambientação sonora, figurinos e movimentação coreográfica remetem à floresta e aos povos indígenas. Ou seja, a resistência e resiliência de negros, mulheres e indígenas é incorporada pelos bailarinos, numa relação com o som que inicia na dissociação – música como fundo sonoro, quase estático, de efeitos naturais e eletrônicos – e culmina sabiamente numa intensa conexão do movimento de todos os corpos com as forças rítmicas da música. Depois de tanto questionar, Muyraquytã conclui apresentando a força do coletivo como possível resposta para a vivência e sobrevivência das identidades que resistem.

Mas o elemento comemorativo não esteve completamente ausente. Em Isso dá um baile, com coreografia de Henrique Rodovalho, é posta em cena a alegria dos bailes funk, num híbrido de movimentos do passinho e de técnicas de balé e dança contemporânea, estas últimas já tão incorporadas pelos bailarinos do BCSP. O resultado é difícil de definir, em termos de vocabulário de movimento, e é aí que reside parte do modernismo da obra: quanto mais nova é uma arte, menos fixos estão seus códigos.

Isso dá um baile. Foto: Bruno Gregório

Na intenção de transgredir, de chocar, tão cara aos modernistas de todos os tempos, Isso dá um baile apresenta corpos salientes, figurinos sensuais e cintilantes, música alta e pulsante. Nada de estranho aos bailes funk, mas bastante coisa estranha aos padrões de etiqueta do Theatro Municipal. Mesmo que os bailarinos incentivassem o público a interagir, a dançar como num baile, a plateia lotada da última récita permaneceu estática em seus assentos.

Era estranha a sensação de, por um lado, ter um pancadão vibrando o chão e os ossos de tanta gente, e por outro ver pessoas dançando e festejando apenas no palco. A falta de interação do público fez com que a obra parecesse mais longa do que deveria. Isso, em outros contextos, poderia ser um elemento negativo, mas já que a semana é de arte moderna e a ideia é transgredir, a longa duração caiu bem. Em Isso dá um baile, a estética funk ocupava todos os minutos de palco possíveis, sem vergonha, como forma de compensar e questionar o pouco espaço que ela tem no cristalizado palco de 110 anos do Theatro Municipal.

Tanto Isso dá um baile quanto Muyraquytã dão o protagonismo a identidades marginalizadas e enfatizam a potência da coletividade. A mensagem moderna do BCSP, que vem de um longo isolamento social pandêmico, é sobre dar voz e espaço, além de construir e reconstruir relações com o outro, curando algumas fraturas sofridas em nosso senso de comunidade.

Deixe um comentário

Crie um site ou blog no WordPress.com