Como o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky mudou o balé para sempre

O que seria do balé sem Peter Ilyich Tchaikovsky? Ele compôs apenas três balés, porém Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida e O Quebra Nozes redefiniram o que o balé pode ser e pode significar. Compostos em uma época em que a maior parte das músicas para balé não pretendiam ser muito mais do que uma animada plataforma para a dança, a narrativa e o cenário – Espanha ensolarada! Índia exótica!¹ – a partitura densamente organizada e extremamente melódica de Tchaikovsky rompeu com as convenções. Mais do que estruturar suas obras como o padrão da época de “colar de pérolas”, com divertissements independentes seguidos de divertissements independentes, Tchaikovsky roteirizou sua música de balé com linhas sinfônicas estendidas, de modo que os temas e leitmotifs pudessem se desenvolver e reaparecer. O sentido musical acumula, aprofunda, floresce, e enquanto isso conta a história com dinâmica poética e poder imaginativo.

Tchaikovsky não inovou num vazio. A partitura de Adolphe Adam de 1841 para Giselle implementou reconhecidamente o leitmotif, que é a repetição de um curto identificador musical para cada personagem, e assim conjurou assustadores mistérios de sepultura. Tchaikovsky admirava profundamente a música para balé de Leo Delibes, cujo balé Sylvia havia estreado em 1876, um ano antres de seu próprio Lago dos Cisnes. A música da cena do “Reino das Sombras”, do La Bayadère de seu amigo Ludwig Minkus, estreou em São Petersburgo no mesmo ano que Lago dos Cisnes estreou em Moscou, invocando uma eternidade transcendente e uma infinidade de bailarinas.

Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Carol Lancelotti

Mas esses já eram os destaques. Custou a Tchaikovsky provar que o balé podia carregar um impacto catártico, deleite, encanto, evocar a mais obscura tragédia – e ainda assim fazer você querer dançar. Hoje, suas obras são os três grandes balés, um trio canônico. Essas três obras saltaram para além do balé e se tornaram centrais no repertório orquestral, sendo apresentadas por si só como música de concerto. Como George Balanchine observou, “se não fosse por Tchaikovsky, não haveria nenhuma dança”.

Se há uma partitura de Tchaikovsky que empurrou o balé adiante, essa foi o seu primeiro balé, o Lago dos Cisnes. Mas não havia certeza disso. Em 1875, ele escreveu para o compositor russo Rimsky-Korsakov: “A pedido dos diretores de Moscou, estou escrevendo a música para o balé ‘O lago dos cisnes’. Assumi esse trabalho em parte pelo dinheiro, de que eu precisava, e em parte porque há muito tempo eu queria treinar minha escrita nesse tipo de música”. Ele trabalhou rápido, e o Lago dos Cisnes estreou em 1877 no Teatro Bolshoi, em Moscou. Mas ele não foi exatamente bem-sucedido. O coreógrafo Julius Reisinger era algo como um coreógrafo “burocrático”, e seu cenário era de baixa qualidade. Alguns críticos julgaram a música “muito wagneriana”, enquanto outros entenderam o que Tchaikovsky queria. Modest Tchaikovsky, irmão do compositor e também libretista e dramaturgista de ópera, lamentou “a pobreza da produção […] a ausência de artistas notáveis e a fraqueza de imaginação do mestre de balé”.

Juliana Valadão como Odette na montagem de Lago dos Cisnes do TMRJ. Foto: Carol Lancelotti

Mas havia algo na música e na história que não permitiu que o balé desaparecesse: com a coreografia revisada, Lago dos Cisnes atingiu por volta de quarenta apresentações em Moscou, algo substancial para a época. Tchaikovsky pode não ter odiado completamente a experiência, pois eventualmente retornou ao balé, criando A Bela Adormecida (1890) e O Quebra-Nozes (1892), em circunstâncias mais favoráveis artisticamente no Teatro Mariinsky de São Petersburgo e com uma equipe poderosa da casa: os coreógrafos Marius Petipa e Lev Ivanov. Essas foram colaborações criativamente satisfatórias, com resultados criativamente satisfatórios. Depois da morte de Tchaikovsky em 1893, Ivanov encenou a cena do lago de Lago dos Cisnes para uma apresentação beneficente de 1894. De repente, o público começou a ouvir o que havia em Lago dos Cisnes como um todo, e em 1895 Petipa e Ivanov coreografaram sua própria versão completa de Lago dos Cisnes. Riccardo Drigo fez algumas revisões na partitura e regeu a estreia, e Modest Tchaikovsky providenciou um cenário mais dramático e convincente. Essa versão se tornou o padrão para quase todas as produções seguintes, e Lagos dos Cisnes alçou vôo.

Mas o que faz com que a música de Lago dos Cisnes seja tão boa? “Comecemos com o fato de que Tchaikovsky era um gênio”, disse o diretor musical do New York City Ballet Andrew Litton. “Esse foi seu primeiro balé, e ele veio de um período em que ele estava escrevendo suas primeiras grandes obras. Se colocarmos isso na perspectiva do New York City Ballet, logo antes desse balé Tchaikovsky havia escrito sua terceira sinfonia, que conhecemos como a música de Diamonds. Três anos após Lago dos Cisnes ele escreveu a Serenata para Cordas, que Balanchine coreografou como Serenade. Era um período de criatividade fértil.

André Grippi como príncipe Siegfried, Thamiris Prata como Odette e Diego de Paula como mago Rothbart na montagem da SPCD. Foto: Marcelo Machado

“Tchaikovsky escrevia com o coração”, Litton continua. “É isso que fala com a gente, mesmo tantas décadas depois. É uma música muito apaixonada, muito romântica”. Perguntei a Litton o que ele via como o clímax emocional da partitura e a resposta foi entusiasmada: “Penso que os compassos mais extraordinários que Tchaikovsky já escreveu acontecem logo no final do balé, quando o príncipe retorna. A música tem duas frases de sete compassos, o que é bem incomum. Ele só repete a melodia uma vez. Então você ouve esse fantástico e apaixonado derramamento duas vezes, e é isso. Ele desaparece e nunca mais retorna. Ele não está previsto de antemão. É um extraordinário fragmento musical, e minha maior frustração com Tchaikovsky é ele não ter transformado isso numa sinfonia. O balé tem linhas de cordas precipitantes, incríveis harmonias viscerais, e isso é cumulativo a esse ponto da história. O que resta pra acontecer? O príncipe tem que retornar, e ele retorna com a maior entrada musical de todos os tempos.”

A partitura não é uma série de picos de Sturm und Drang² isolados, no entanto. “O que faz as partituras de balé de Tchaikovsky sinfônicas é a estrutura ‘de através’³” diz Litton. “Sempre há um senso de linha e desenvolvimento, mesmo quando ele vai para pequenas viagens paralelas como as danças húngaras, russas e espanholas. Uma variação do grande tema de Lago dos Cisnes é apresentada primeiro, antes de abrir as cortinas. E então ele retorna de novo e de novo. Tudo isso cria material ótimo para um balé fantástico.”.

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1. O autor parece se referir aos balés Don Quixote (1869) e La Bayadère (1877), ambos compostos pelo compositor Ludwig Minkus e conhecidos por ter uma trama musical mais simples que os balés de Tchaikovsky (N.T.).

2. Sturm und Drang foi um movimento literário alemão que inspirou o romantismo musical do século XIX. Oposto aos ideais iluministas, incentivava a liberdade de expressão dos sentimentos e valorizava, em composições musicais, momentos de extremo contraste dinâmico (N.T.).

3. through-structure (N.T.).

2 respostas para “Como o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky mudou o balé para sempre”.

  1. Avatar de Escola Feminista

    Maravilhosos balés de Tchaikovsky!

  2. Avatar de Robinson (Rober) Kremer
    Robinson (Rober) Kremer

    Francamente, apesar eu ser dançarino (folclorista), eu não curtia muito balé de repertório e foi justamente com o Lago dos Cisnes que eu me encantei pela coisa. Ainda não cheguei a ver nenhuma montagem ao vivo, ou melhor, vi. Foi O Quebra-nozes com a montagem do balé da escola do Teatro Guaíra e foi lindo demais. E nem preciso falar como adoro apenas ouvir a música também.

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