A harpa nos balés de Tchaikovsky

Piotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893) foi, sem dúvida, um compositor com enorme talento para escrever música para balé. Não só com talento, mas com ousadia, pois muito do sucesso de suas composições se deve à coragem que ele teve em desafiar a forma como a música para balé vinha sendo composta em sua época. Ludwig Minkus, por exemplo, foi muito mais previsível em suas composições para o balé La Bayadère (1877), entregando resultados musicais convencionais, pouco elaborados em questão de orquestração. Isso não acontece com Tchaikovsky: sua música é elaborada e dá mais vida à dança, e por isso mesmo também se basta como música puramente instrumental.

Aqui pretendo mostrar como o uso de cadenzas de harpa é feito de forma muito sábia por parte de Tchaikovsky. A harpa é o único instrumento verdadeiramente solista em todos os balés do compositor, mas solista no sentido de “concerto para instrumento solo”. Todo concerto para violino, piano, flauta etc., tem um momento especial no qual a orquestra interrompe seu acompanhamento para que o solista toque verdadeiramente sozinho. Esse momento é tradicionalmente chamado de cadenza, e é quando o solista pode improvisar ou tocar um solo já composto, mas em qualquer dos casos ele tem mais destaque e possibilidades de expressão do que nos momentos anteriores do concerto. E nos balés de Tchaikovsky apenas a harpa tem o privilégio de ser tratada dessa maneira, em pontos estratégicos.

Comecemos por Lago dos Cisnes. O primeiro dos balés de Tchaikovsky a ser composto (e o último a ser coreografado…) já possui esse elemento. A cadenza de harpa surge no segundo ato, na introdução ao pas de deux de Odette. Mas, ao final do primeiro ato a harpa já havia surgido como instrumento de acompanhamento para o motivo principal do balé (a famosa melodia do oboé), o que faz com que haja uma associação direta entre a figura do cisne e o timbre da harpa. Em produções do Balé Mariinsky – companhia que estreou esse balé em 1895 – é possível encontrar uma versão expandida da cadenza de harpa, que permite justamente que esse momento tenha um maior apelo dramático em cena, além de manter a tradição de maior liberdade criativa que é típica das cadenzas!. Quem teria criado essa versão, considerando que a obra só estreiou após a morte de Tchaikovsky? 

E depois disso a harpa some durante a maior parte do Lago dos Cisnes. Ela torna a aparecer um pouco fora de contexto, na partitura de 1895, em uma das variações de pas de six do terceiro ato. Mas o Bolshoi, em sua sabedoria, utilizou essa música como variação de Odile (cisne negro!), o que gera uma interpretação interessantíssima: se a harpa “representa” o cisne branco e vemos o cisne negro dançando ao som da harpa, ambos os cisnes se fundem em um só, gerando uma metáfora sonora daquele feitiço que faz o príncipe Siegfred ficar confuso e não mais saber se quem dança é Odette ou Odile…

Se em Lago dos Cisnes a cadenza de harpa primeiramente enfatiza o encontro romântico do casal, em A Bela Adormecida (1890) enfatizará o amadurecimento de Aurora. Aqui, a cadenza de harpa estará presente na introdução do Adagio da Rosa, momento em que Aurora dança com seus quatro pretendentes. E então, novamente em versão do Balé Mariinsky, podemos encontrar uma cadenza de harpa diferente da comumente vista em outras companhias de balé: mais longa, com progressão de acordes mais elaborada. Os harpistas da Rússia levam o balé a sério!

Já em Quebra Nozes (1892), o último dos balés de Tchaikovsky, a cadenza aparece mais tarde do que em todos os outros balés: somente na Valsa das Flores, que fica no final do segundo ato. É a primeira vez que uma cadenza de harpa não está diretamente associada a um dos personagens principais do balé, mas sim a uma coreografia de corpo de baile. Por quê? Eu interpreto isso da seguinte maneira: como se trata de um balé natalino, faz muito mais sentido realçar um senso de união e comunidade do que heroificar um dos personagens. Talvez por isso que é difícil dizer quem realmente é o personagem principal de Quebra Nozes: Clara? O próprio Quebra Nozes? O mago Drosselmeyer? A Fada Açucarada? Quando se assiste esse balé, mesmo havendo vários solistas, parece não haver centralidade suficiente em nenhum deles, mas sim em uma ideia de “magia do natal”.

Sabendo da importância da harpa para a música de balé (e considerando a facilidade que é transpor uma partitura escrita para piano diretemante para a harpa), é muito comum que a Morte do Cisne, mesmo tendo sido escrita originalmente por Camille Saint-Säens para dois piano e violoncelo solo, seja executada por duas harpas e violoncelo solo. Principalmente quando se trata (é claro) de produções do Balé Mariinsky. Harpa, balé e Rússia tem realmente uma interligação muito especial.

*Foto de capa: Alexander Boldachev (Harpista solista do Teatro Bolshoi)

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