Gritos de natureza e caos em Ibi, de Gal Martins

Soa o terceiro sinal, o teatro apaga suas luzes de plateia, mas a cortina permanece fechada. Ouve-se – apenas ouve-se – um canto coletivo com batidas de pés descalços no chão. Conforme a cortina se abre, o canto cresce em intensidade e em velocidade, revelando uma roda ritual de envolvimento visceral que se desfaz assim que atinge seu ápice. É como se a roda explodisse, levando todos os bailarinos e bailarinas para o chão.

Assim inicia-se Ibi: da natureza ao caos, coreografia de Gal Martins para a São Paulo Companhia de Dança que estreou na temporada de dança 2022 do Teatro Alfa. Baseado em O amanhã não está à venda, do ativista indígena Ailton Krenak, Ibi é um trabalho que apresenta uma imagem de natureza em crise, crise essa que ficou ainda mais evidente desde o início da pandemia de COVID-19. Como solução, propõe-se a coletividade e uma nova relação com a natureza, ideias que os Krenak já praticam há tempos e que surgem na micro-sociedade de artistas criadores de Ibi.

Ibi é um trabalho de muitas mãos, feito com base em um intenso diálogo entre quem coreografa, quem faz música, quem costura e quem cria adereços e luzes. Essa rede de diálogos reune forças para pôr em cena uma gama de referências afrocentradas, cujo valor não está tanto em abrir perspectivas criativas da SPCD ou do Teatro Alfa, mas sim em dar corpo e voz às bordas, à arte da periferia.

Artista da periferia sul de São Paulo, Gal Martins desenvolve e trabalha há anos a metodologia da Dança da Indignação, que se baseia no sentir da filosofia kemética e no devir-animal deleuziano. Com essas ferramentas, Gal extrai dos bailarinos e bailarinas da SPCD um estado de corpo que desalinha técnicas tradicionais de balé e dança contemporânea (embora não as anule) e constrói no grupo uma interdependência sensorial, visceral e ritualística.

É por isso que a voz de quem dança cai bem em Ibi: é eficaz porque é indomada, e surge como se fosse resultado natural e necessário do êxtase dos corpos. Mesmo quando é canto, em Ibi a voz é sempre grito, tanto coletivo quanto individual nos enérgicos solos de Nayla Ramos e de Nielson Souza.

Combinar voz ao vivo com sons gravados, no entanto, sempre é um desafio: todo grito tende a soar mais impactante na sala de ensaio do que na amplitude do teatro, além do risco de ser encoberto pelos alto-falantes. Essa questão de competição sonora acontece em Ibi, mas felizmente acaba por dialogar com a proposta do trabalho, trazendo natureza e caos em formas de som e movimento.

Na metade de Ibi, o grito de Nayla é natureza, pois funde-se em timbre e intensidade com os sintetizadores da música de Dani Lova. Ao final de Ibi a situação é outra, e os sons de Nielson são engolidos pelo caos sonoro de metrópole, de modo que sua respiração ofegante e seu grito só se tornam audíveis quando acaba a música, e encerram a obra em aflição. Assim, Ibi grita a necessidade urgente de retomada de conexão com a natureza, conexão para a qual os povos africanos e indígenas carregam as respostas há séculos.

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Essa crítica foi escrita como relatório de finalização do primeiro Território Cultural da São Paulo Escola de Dança, que consistiu em uma visita ao Teatro Alfa na ocasião de estreia de Ibi. Tatiana Avanço é colaboradora da Associação Pró Dança e docente do curso de Dramaturgia da Dança e dedica esse texto a todos, todas e todes envolvidos nesse evento, que foi um marco na história de nossa escola.

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Ficha técnica

Concepção e direção coreográfica: Gal Martins

Trilha Sonora Original: Dani Lova (direção musical e criação) com voz e contribuição artística de Thais Dias

Figurino e Visagismo: Gil Oliveira

Iluminação: Camila Andrade

Cenografia e Adereços: Caio Marinho

Cenotécnico: Pedro Paes

Assistente de Figurino: Bábi Batista e Giselle Carvalho

Elenco: Dandara Caetano, Hiago Castro ou Daniel Reca, Kaynan Oliveira, Leonardo Pedro, Letícia Forattini, Matheus Queiroz, Michelle Molina, Nayla Ramos, Nielson Souza e Pâmella Rocha

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