As linhas de força do Balé da Cidade em Adastra e Motriz

O Balé da Cidade de São Paulo retorna ao palco do Teatro Alfa trazendo diversos vetores, linhas de força de corpo, de som e de luz que se atravessam, se cruzam e se fortalecem. No repertório, a tradicional Adastra (2015) de Cayetano Soto e a recente Motriz (2022) de Cassi Abranches são meios, são veículos pelos quais a força dos bailarinos do Balé da Cidade se concretiza em cena.

Adastra já é um dos clássicos do grupo, que havia estreado no palco do Alfa em 2015, ano em que o Balé havia estado lá pela última vez. Tem por motivo o lema latino “per aspera, ad astra”, que se refere ao esforço que conduz ao triunfo, ao alto, às estrelas.

É por isso que o que move Adastra são as forças verticais e ascendentes: na corporalidade dos bailarinos, que mesmo quando passam pelo chão almejam subir, na luz fria que vem exclusivamente do alto, e no ato de entrar em cena subindo escadas que vem do fosso do palco. Em nenhum momento alguém desce por essas escadas, e sempre sobe-se nelas de costas para a plateia, como se também nós estivéssemos em ascensão.

Adastra (Foto: Silvia Machado)

A música de Ezio Bosso para Adastra também expressa forças ascendentes. De caráter um pouco minimalista porém bastante melódica, traz a homogeneidade e sobriedade do quarteto de cordas com arcadas sempre enérgicas e ligadas, num esforço musical que recusa por completo a leveza dos staccatos e pizzicatos, típicos da escrita para cordas. Esse esforço do gesto do músico soma-se à direção linear de um longo crescendo ao meio da obra, que ao atingir o ápice é acompanhado por uma súbita chuva de brilho em cena. A força desse efeito cênico não seria a mesma se ele não estivesse tão bem encadeado com as forças sonoras.

Se as forças de Adastra somam-se num sentido comum, as de Motriz apontam para diferentes direções. Se Adastra fosse um espelho, Motriz seria um caleidoscópio: a primeira reflete uma mesma imagem de força por vários meios, a segunda refrata uma multiplicidade de forças. Num processo criativo semelhante ao de Agora (2019), Cassi Abranches explorou os diferentes sentidos que a palavra força manifesta, seja como força maquínica, coletiva, individual, musical, medida ou desmedida, violenta ou resistente.

Motriz (Foto: Silvia Machado)

Porém, dentre todas essas forças, a que se sobressai é a força do próprio corpo. A música do BaianaSystem, composta especificamente para Motriz, desafia coreógrafa e bailarinos ora a entrarem nos pulsantes ritmos da música eletrônica, ora a buscarem o impulso em si mesmos. Diante da sofisticação de texturas e timbres proposta pelo BaianaSystem, as possibilidades de corpo são muitas, mas se multiplicam ainda mais quando a busca pela força e pelo motivo da motricidade leva ao ritmo do movimento.

É o que acontece principalmente no solo de Jessica Fadul, que é constantemente derrubada lateralmente pela força humana de uma surreal estação de metrô, mas mantém-se inexorável numa direção frontal que é só sua, sustentando um ritmo físico que não pode ser musical: precisa ser só seu. No duo dos elásticos, há uma força de magnetismo impulsionada pelo figurino e várias vezes enfatizada pelos impactos sonoros. O solo de Grécia Catarina, por sua vez, entra numa leve harmonia com a guitarra baiana, com uma soma de forças entre som e movimento.

Ao alternar entre tantas forças diferentes, Motriz corre o risco de perder-se no emaranhado de suas próprias linhas de força. Porém se a proposta é mesmo multiplicá-las, o prazer ou desconforto de quem se perde assistindo é questão de gosto.

Na publicação dessa crítica, deparo-me com o triste encerramento das atividades do Teatro Alfa, depois de 25 anos sendo referência para a dança de São Paulo. Não se sabe se há esperanças de retomada do Teatro, mas resta apenas torcer para que a retomada do Balé da Cidade ao palco do Alfa não tenha, novamente, tons de despedida.

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