8ª Mostra dos artistas do CRD: Será que estamos, Fênix do sertão, Maníaca e O jazz dance vive

A convite de Josie Berezin – produtora do Centro de Referência da Dança (CRD) -, tive o prazer e a honra de escrever uma série de três textos críticos sobre a 8ª Mostra de Artistas Residentes do CRD. Foi um evento de abertura de processos coreográficos e performáticos de artistas que tem frequentado o espaço desde 2022. Esses textos tem a função de fomentar a produção artística do CRD e de seus artistas residentes, fornecendo reflexões que possam estimular e fortalecer os trabalhos apresentados, e contam com fotos da parceria com Giorgio d’Onofrio.

Será que estamos?

Enrolar toalhas na cabeça pode ser um jeito de descobrir a si e ao seu corpo, cantando e dançando em frente ao espelho, principalmente para quem se descobre gay. A partir desse jogo lúdico, Renato Vasconcelos (ex-integrante da iN SAiO cia. de Artes) e Rodrigo Raiz criaram um duo para refletir sobre homossexualidade e a relação com o espaço urbano.

Questionando a ausência de espaços públicos de banho em uma cidade tão quente e tropical como São Paulo, Renato e Rodrigo conceberam essa performance idealmente para espaços públicos. Transportada para o espaço cênico do CRD ela segue eficiente, mas talvez perca um pouco de seu viés crítico justamente por estar num lugar em que a performatividade não é uma surpresa, e sim uma ação esperada e bem recebida. No entanto, é o vínculo dos corpos pulsantes com a música que mantém o duo conectado à rua e às suas festividades, que surgem como funk e vários outros gêneros musicais urbanos e periféricos.

Se considerarmos a heteronormatividade como um rosto, uma máscara que nos obrigaram a vestir, a toalha que se enrola na cabeça e oculta o rosto pode ser um caminho para a descoberta de outros modos de ser.

Canela-de-Ema: a fênix do sertão

Esse solo de Carolina Diniz Bastos guarda semelhanças com o duo A mar, do dia anterior da Mostra. Ambos os trabalhos tratam dos conflitos da feminilidade na sociedade patriarcal, e abordam a criação em dança como uma forma de denúncia e superação dessas questões. O solo de Carolina, por sua vez, apresenta um misto de Grande Sertão: Veredas, Pink Floyd e jazz dance para retratar uma feminilidade que, como a flor canela-de-ema, desabrocha das cinzas de um mundo machista.

É por meio do jazz dance que Carolina dá à aridez do som do metrônomo um senso de frase, ritmo e fluidez, fazendo florescer um mundo dançado no solo seco da pulsação mecânica. Em outros momentos, a letra das canções tem bastante importância para ambientar o solo, mas a palavra mostra-se importante principalmente no início, quando Carolina recita, possivelmente, trechos de Grande Sertão: Veredas. Nesse momento, uma projeção mais acentuada e clara da voz colaboraria para que o texto alcançasse melhor o público. Seja florescendo ou tornando-se mar, fica evidente a necessidade de trabalhos técnicos que considerem a voz como um elemento da própria dança, e potencializem o desejo de tomar a palavra que tem despontado nas mulheres em cena.

Maníaca

Com um trabalho que mais se aproxima do campo da performance do que da dança contemporânea, Bruna Custódio põe em cena uma crítica à patologização da loucura e do feminino. Retratando-se como a interna de um hospital, Bruna mergulha nas angústias resultantes da privação de liberdade, da fraqueza da doença, e do controle hospitalar sobre seu corpo. A magreza de Bruna sugere, talvez, uma personagem anoréxica, e suas interações com o espelho levam a pensar sobre o passado dessa personagem numa busca insalubre pelo corpo ideal.

Nesse ambiente de debilidade surrealista, parece que a música serve como um narcótico, como um dos poucos elementos capazes de tirar o corpo do torpor e dar-lhe picos repentinos de energia e euforia. A música é sempre eletrônica e frenética, e age como uma droga estimulante e anestesiante que impulsiona-a se jogar no espaço para, logo que a música acaba, mostrar sua exaustão e seu retorno ao mal estar. É um trabalho que, por ser bastante experimental, pode se beneficiar bastante da exploração dessa relação narcótica e performática com a música.

De volta às bases: o jazz dance vive

Trata-se de um estudo pedagógico e coreográfico de Flavia Pereira, pesquisadora das raízes afrodiaspóricas do jazz dance, interpretado por Victoria Carvalho. As páginas da apostila Uma introdução ao Jazz Dance, de autoria de Flavia, é transformada em movimento vivo no corpo de Victoria, dando à apostila a corporeidade e a sonoridade às quais ela, de fato, se refere.

Nesse solo que é um livro vivo, o prazer reside em sentir a intimidade rítmica entre a música e a dança. É um efeito que exige bastante dos ouvidos da intérprete e da coreógrafa, requer um bom estudo da estrutura musical que, em outros ambientes, costuma ser deixado em segundo plano. Porém o jazz dance é um gênero em que não se teme nem se envergonha em estar intimamente ligado à música: valoriza-se a potência estética dessa conexão. Fica a expectativa de ver e ouvir essa intimidade rítmica dos trabalhos de Flavia em sala de aula e em cena novamente.


Será que estamos?
Direção, criação e interpretação: Renato Vasconcelos e Rodrigo Raiz
Trilha Sonora : Denis Duarte e DJ Mistaluba
Produção: Camila Ziviani

Canela-de-Ema: a fênix do sertão
Núcleo Flora
Coreógrafa e intérprete: Carolina Diniz Bastos

Maníaca
Artista criadora e intérprete: Bruna Custódio

De volta às bases: o jazz dance vive
Direção, coreografia e interpretação: Flavia Pereira
Bailarina: Victoria Carvalho

Fotos da Parceria com Giorgio D’Onofrio

Veja também os outros textos sobre a Mostra:
8ª Mostra de Artistas Residentes do CRD

2 respostas para “8ª Mostra dos artistas do CRD: Será que estamos, Fênix do sertão, Maníaca e O jazz dance vive”.

  1. Avatar de Renato Vasconcelos
    Renato Vasconcelos

    Muito bom o seu texto, Tatiana. A identificação da música que é de carácter mais popularesco, vamos dizer assim, era mesmo uma alternativa para continuarmos em dialogo como a rua. Nosso percurso de inicio, lá no espaço externo até o palco à italiana está fazendo parte dos métodos deste trabalho, “Será que estamos?”. Eu não acredito que ele tenha sido concebido idealmente para o espaço externo. Nós passamos por algumas mudanças e atualmente o trabalho está sendo construí-lo dentro da caixa preta. Isto está nos dando a chance de abrir certos questionamentos, que vem se encaixando à pergunta inicial. O banho público, nesta cidade quente e tropical como você menciona, seria uma espécie de cuidado com a gente mesmo, num âmbito político bem amplo. O que acontece é que a prescrição moral “conhece-te a ti mesmo” esteve muitíssimo atrelada, na antiguidade clássica, quando então os banhos coletivos eram mais cultivados, as noções de “cuida de si mesmo” (epiméleia heautoû)” Esse epiméleia faz parte da raiz que gera epistemologia. Então, “Será que Estamos?” é uma pergunta não só do ponto de vista moral, mas também da ética do cuidado com a gente. No nosso caso, que somos “as bichas do rolê”, que tipo de cuidado e respeito, porque afinal respeitar é cuidar, né? estamos tendo, cultivando, fomentando e recebendo.
    Fico muito feliz com sua iniciativa em escrever sobre dança e música e nos ajudar com a qualidade dos nossos trabalhos. Parabéns. Espero encontrá-la mais vezes.

    1. Avatar de Tatiana Avanço Ribeiro

      Olá Renato, fico feliz em poder colaborar com as reflexões sobre seu trabalho! Foi um prazer poder conhecer o “Será que estamos?” no CRD, acho muito pertinente esse entrelaçamento de questões sobre rua, palco, banhos e cuidado de si que a obra levanta. Com certeza acompanharei seus desdobramentos na mostra seguinte, nos vemos em breve

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