7. A cama que a gente arruma para Ana bagunçar | iN SAiO

Páginas de um diário de bordo do processo criativo de dança de Claudia Palma, Armando Aurich e Ana Mondini na iN SAiO cia. de Artes

6. O sonho de Claudia | iN SAiO


02 de março

Nesses ensaios ainda iniciais, muito se lê, muito se fala e muito se escreve, porém começa-se a perceber que o verbo precisa se encarnar – e está se encarnando – na vivência do corpo.

O ensaio começa com a necessidade de Claudia em ler novamente o projeto que deu origem a essa criação. Conforme lêem, Claudia Palma e Armando Aurich percebem que já não estão mais exatamente no projeto, que as ideias estão virando corpo e já ultrapassam o texto escrito. Talvez essa necessidade de leitura tivesse em si uma intuição de que a criação estava começando a caminhar com as próprias pernas.

As memórias, que são um dos motes dessa dança, tem passado pelos dois por meio da palavra falada, numa contação de lembranças vividas em dupla e em trio (com Ana Mondini). No entanto, vem à tona mais uma necessidade: a de de limitar o tempo de discussão e de rememoração para preservar o tempo de trabalho direto com o corpo a cada ensaio. A palavra semeia as memórias entre eles, mas é só no silêncio que elas poderão brotar no corpo, dando origem a uma nova dança.

Aquecem-se não ao mesmo tempo, mas um em apoio ao outro, conduzindo sensibilizações na coluna vertebral com técnicas de eutonia. Coluna como uma parte do corpo que conecta o topo ao rabo, o humano ao animal, e também como parte do eu que só pode ser vista pelo outro. Daí a necessidade de terem seus momentos individuais de experimentação coreográfica, para que o olhar do outro dê totalidade ao eu.

09 de março

Claudia está gripada, Armando ensaia sozinho na Olido. É uma deixa para testar o formato de ensaio virtual que será realizado com Ana Mondini em breve: Claudia assiste o ensaio via Zoom, num ponto de vista semelhante ao que Ana terá de Portugal. Oportunidade para dar voz à necessidade que despontava no ensaio anterior: trabalhar as experimentações de dança individualmente e não o tempo todo juntos, para que possam olhar um ao outro.

No livro Escute as Feras (2021), Natassja Martin narra que só foi mordida porque olhou pro urso, e essa mordida é um encontro. Encontro e olhar, portanto, são duas faces de uma mesma moeda. Depois de olharem-se – e morderem-se – mulher e urso transformam-se um no outro. É nessa semana de ensaios focados no olhar que desponta uma primeira possibilidade de nome para a obra: Miêdka, palavra que designa a pessoa “marcada pelo urso”, transformada pelo encontro, que dali em diante é metade humana e metade animal.

O olhar do outro, portanto, não só constitui como transforma identidades. Aguardam pelo olhar de Ana, que os transformou no passado e há de transformá-los novamente.

16 de março

Há dois meses ensaiando em silêncio, Claudia e Armando têm uma temporalidade interna e compartilhada entre si. A música, que também terá suas características de ritual, acabará impondo uma outra temporalidade, na qual o pulso marque um tempo mais coletivo e menos internalizado. Se, ritualisticamente, o pulso é fator de catarse, há que se ensaiar com música em breve e adaptar-se a uma outra ideia de tempo.

Claudia e Armando querem que a música seja um chão para a dança.
Buscam uma qualidade rítmica aterrada, que impulsione o corpo para baixo, e remeta às resolutas marcações de pés na terra frequentemente encontradas em rituais de povos originários. Em contraste com isso, eles descrevem o que não querem para o trabalho: o impulso corporal vertical da música eletrônica, que por mais que também leve ao êxtase acaba por remeter a contextos mais distantes da proposta.

23 de março

Primeiro compartilhamento do processo criativo com Ana Mondini, virtualmente. Embora o trabalho permaneça em aberto, é momento de reconhecer que muito já foi feito e começar a traçar limites. Assim como em Escute as feras, por mais que ao abrir feridas o urso abra portais de transformação, é preciso saber o momento em que “é preciso fechar as fronteiras”, cicatrizar, estabelecer que “daqui em diante não se entra mais” (2021, p. 54).

Ao assistir, Ana compreende essa primeira necessidade de acabamento artístico e descreve três pilares da criação: instinto, intuição e intelecto. O instinto está na animalidade, no senso de sobrevivência. A intuição é a voz da alma, da tranquilidade e da autoconfiança, e é dela que vem a inspiração. O intelecto, por sua vez, é quem une o instinto à intuição, dando origem à forma artística por meio da razão e, assim, tornando os elementos compreensíveis ao público.

Intensamente vinculados ao instinto e à intuição, Claudia, Armando e Ana concluem que é momento de agir segundo o intelecto: é por meio dele que suas vivências pessoais se transformarão em vivências reconhecíveis por outros.

Como é uma criação que trata de vivências e não de performatividade técnica, Claudia enfatiza: “Não quero que o trabalho seja mostrar ‘o melhor’ de cada um”. Ana discorda: “Nessa idade a gente só faz o melhor que pode” no entanto “o que eu tenho a oferecer hoje não tem mais nada a ver com técnica”.

30 de março

O encontro com Ana reverbera, e muda vários olhares de Claudia e Armando sobre o trabalho. O espaço circular do sonho de Claudia evolui para um labirinto redondo, a ser atravessado em dança até atingir seu centro, onde as forças centrípetas se concentram e o encontro acontece. É um labirinto a ser traçado com cadeiras, para dançar entre elas e trazer o público mais perto desse ritual.

Na ideia de encontro, Ana visualizou a metáfora de correntes elétricas: forças inesperadas que fazem o corpo tremer a partir de um contato. Assim, o encontro entre os três vira também um choque, um imprevisto que desestabiliza tanto quanto mobiliza seus corpos de ontem e de hoje.
Como diz Armando, essa criação é “uma cama que a gente arruma para Ana bagunçar”.


8. Labirinto dos sentidos | iN SAiO

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